A África do Sul é um país paradigmático no domínio da videosegurança, com uma assumida “máquina de vigilância privada a alimentar um apartheid digital”. Tem 1.100 esquadras de polícia, com 180 mil agentes, mas regista quase 11.400 empresas de segurança com mais de 560 mil guardas.

As videocâmaras de vigilância “recriam o equivalente digital das cadernetas, ou passaportes internos, um sistema da era do apartheid que o governo usava para limitar os movimentos físicos dos negros em enclaves brancos”, recorda Michael Kwet, professor da Yale Law School. “Apenas os negros eram obrigados a ter as cadernetas; os brancos moviam-se livremente”, numa recriação que “tenta propositadamente enganar o público para criar medo em vez de esperança, onde a tecnologia é bem-sucedida no combate ao crime” e em que “a privatização da segurança pública eliminou a discussão sobre como o mesmo dinheiro poderia ser gasto” a diminuir a pobreza.

“À medida que os políticos e a sociedade adoptam as tecnologias digitais, da IA ao reconhecimento facial, as consequências dos preconceitos embutidos contra grupos não-brancos estão a tornar-se cada vez mais aparentes e prejudiciais”, salienta o autor de “Racismo Algorítmico”, Tarcízio Silva.

Um dos efeitos desse racismo algorítmico no Brasil é como “o reconhecimento facial aumenta a violência policial, mas é muito popular”, disse à Rest of World. Um dia viu na televisão uma notícia sobre “um adolescente negro detido injustamente pela tecnologia de reconhecimento facial” mas “o apresentador imediatamente passou a elogiar a tecnologia”.

Estes elogios ocorrem também no Reino Unido, onde a organização Big Brother Watch alertou para o “domínio” dos fabricantes chineses Hikvision e Dahua na videovigilância pelos serviços públicos. O problema é que “esses recursos avançados e intrusivos de vigilância estão a ser silenciosamente normalizados”, resultando em que “não apenas a nossa privacidade e segurança estão em risco num estado de vigilância cada vez mais distópico – mas o dinheiro dos contribuintes britânicos está a financiar empresas envolvidas em genocídio e escravidão moderna na China”.

A China é um estado de vigilância mas os efeitos do seu “autoritarismo digital” são internacionais, a partir do momento em que exporta o modelo de vigilância tecnológica para países com governos de tendência autoritária, nomeadamente em África, onde “as consequências para os direitos humanos provavelmente serão terríveis”, antecipa Willem Gravett, da University of Pretoria.

Quando a China chegou a África

O processo de instalação iniciou-se no virar do século, com fabricantes de equipamento e redes de telecomunicações como a Huawei e a ZTE. A sua presença foi acelerada pelo lançamento da Digital Silk Road (DSR) em 2015, no âmbito da mais vasta Belt and Road Initiative (BRI), lembra a Rest of World. A “controversa” DSR “inclui tudo, desde e-comércio transfronteiriço, cidades inteligentes e aplicações fintech até Big Data, Internet of Things, smartphones e cabos submarinos”.

Três anos depois, num Forum on China-Africa Cooperation (FOCAC), a China prometeu um investimento de 60 mil milhões de dólares para projectos em África.

“Os empréstimos dos bancos estatais chineses são atraentes porque vêm com relativamente poucas condições”, nota a revista Nature. O “maior acordo de telecomunicações da história do continente”, assinado em 2006 entre a Ethiopian Telecommunication e a ZTE, garantiu “um empréstimo de 1,5 mil milhões de dólares para instalar milhares de quilómetros de cabos de fibra ótica para ligar as 13 maiores cidades da Etiópia”.

Naturalmente, “a influência irrestrita das empresas chinesas que desenvolvem cada etapa do ecossistema digital em quase todos os países africanos tornou-se um ponto de preocupação crescente, principalmente para os rivais da China nos Estados Unidos”. Tanto mais que no documento “China and Africa in the New Era: A Partnership of Equals”, apresentado no referido FOCAC em 2018, se referia que 29 países africanos tinham soluções chinesas de “smart government”.

As relações China-África podem parecer amigáveis mas, como a União Africana (UA) percebeu em 2017, tendem a não ser de confiança. Na altura, “um informático descobriu que a China, que tinha instalado a rede de computadores da UA, também tinha colocado um ‘backdoor’ que permitia transferir dados da sede da UA em Adis Abeba, na Etiópia, para servidores na China todas as noites. A operação durou cinco anos. A sede de 200 milhões de dólares foi construída gratuitamente pelo governo chinês, como um presente continental, e foi vista como um gesto simbólico para fomentar as relações sino-africanas”. A China negou a espionagem mas não evitou o incómodo da situação, sintetizou a TechCabal.

Esta revista calcula que, entre 2003 e 2020, a África – principalmente África do Sul, Nigéria e Quénia – recebeu 49 mil milhões de dólares em investimento directo da China. Ao contrário dos EUA ou da Europa, os fabricantes chineses do sector das telecomunicações não foram boicotados no continente africano, apesar de se saber que o governo chinês pode pedir às suas empresas “o acesso a informação sensível”.

Segundo o Future of Privacy Forum, desde 2001 e a aprovação da primeira lei de protecção de dados, em Cabo Verde, 33 países africanos adoptaram leis semelhantes. Em Junho, o New York Times apontou que “as autoridades chinesas são realistas sobre as suas limitações tecnológicas”, enquanto se assiste a utilizadores chineses da Internet a questionarem práticas como a censura a um livro antes de ele ser publicado, questionando os limites do dever das empresas perante o governo e o direito à privacidade dos utilizadores.

Texto de Pedro Fonseca. Foto de Big Brother Watch.