O “modelo chinês” não é único em África e a China nunca esteve sozinha. Foi acompanhada por EUA, Rússia e Reino Unido, Alemanha ou Israel no fornecimento de tecnologias de vigilância, garantindo que, “numa perspectiva mais ampla, a África corre o risco de se tornar um consumidor passivo de tecnologias desenvolvidas por empresas rivais ocidentais e orientais. Como os investimentos na indústria tecnológica nascente na África são insuficientes para desenvolver os mercados domésticos, os estados africanos (a longo prazo) continuarão a importar tecnologias de ponta”.
Naturalmente, podem igualmente importar modelos já testados e de sucesso, como a adopção de uma “Internet fragmentada”.
Apesar de ser um “conceito abrangente e contestado”, esta fragmentação em diferentes redes tem vindo a ocorrer. É conhecida por “splinternet” ou “balcanização da Internet”, num conceito que data de 2001. Clyde Wayne Crews, investigador do Cato Institute, descreveu-o como “Internets paralelas a funcionar como universos distintos, privados e autónomos”.
O fenómeno tem duas componentes essenciais: “a desconexão completa dos sistemas da Internet global (fragmentação técnica) ou manifestações de variações nas experiências dos utilizadores da Internet ao aceder a conteúdo online (fragmentação de conteúdo)”, explica um documento da Comissão Europeia (CE).
Apesar de se assumir que “a Internet não é uma rede única, mas uma rede de redes”, são as imposições técnicas que se procuram aplicar como delimitação fronteiriça. Os EUA, pelo seu carácter histórico, a China e a Rússia pela ideologia, e até a União Europeia pelo controlo misto de tecnologia (cibersegurança) e conteúdos perniciosos, marcam esta agenda geopolítica. Mas vários países africanos também o fazem há anos, ao desligarem o acesso aos utilizadores, com os denominados “shutdowns”.
Os casos são às centenas, incluindo alguns mais cómicos (Argélia, Síria, Sudão, Jordânia e Índia cortam normalmente o acesso na época de exames escolares). Apesar de poderem ser contornados, eles são dispendiosos e os 54 ocorridos em 16 países no primeiro semestre de 2022 custaram mais de 10 mil milhões de dólares à economia global, com a Rússia a ser o país mais afectado, seguindo-se Myanmar, Cazaquistão e Irão.
Este tipo de medidas, iniciadas com a Primavera Árabe em 2010, foi activada mais de 850 vezes na década até 2021, com 90% dos casos desde 2016. Durante 2021, o acesso à Internet foi cortado mais de 180 vezes em 34 países, das quais 106 na Índia e 19 em 12 nações africanas.
Segundo a AccessNow, “as autoridades desligam a Internet para desligarem a democracia”, apesar de se saber que essa decisão “não é eficaz para suprimir protestos”, nomeadamente em África, na análise de Jan Rydzak, da Ranking Digital Rights.
Por seu lado, a China procura muito mais o controlo dos conteúdos, como faz com o “Golden Shield Project” (mais conhecido como “Chinese Great Firewall”, numa referência à Grande Muralha da China). Tem também sido muito activa na (tentativa de) imposição de processos de normalização técnica (“standards”) em organismos internacionais.
A sua proposta em 2019 de um “New IP”, para substituir o protocolo TCP/IP, é apresentada como uma tentativa de criar uma “Internet mais descentralizada”, mas os críticos afirmam que faz precisamente o contrário, garantindo um controlo dos governos sobre redes e utilizadores.
Mais discreta, a Rússia tem procurado criar uma “Internet russa autónoma”, pela reconfiguração da infra-estrutura RuNet pelo menos desde 2014. O objectivo é também impedir o tráfego a que os utilizadores têm acesso, filtrando os conteúdos pelo controlo nos pontos vitais de troca de tráfego de dados (PIXs).
A principal desculpa são as ameaças à segurança nacional e a cibersegurança, mas é através do controlo do PIX ucraniano, por exemplo, que a Rússia consegue desviar o tráfego de dados daquele país para a Crimeia para o analisar e complementar com a sua estratégia de influência para os conteúdos online como faz para África.
Até o norte-americano Council on Foreign Relations reconhece como “a visão utópica de uma rede global aberta, confiável e segura não foi alcançada e dificilmente será realizada. Hoje, a Internet é menos gratuita, mais fragmentada e menos segura”, enquanto os “regimes autoritários conseguiram limitar o seu uso por aqueles que podem enfraquecer o seu domínio e aprenderam como usá-la para reprimir ainda mais oponentes potenciais ou reais”.
Todo este “autoritarismo em rede”, como o denominou Rebecca MacKinnon, generalizou-se. “Os estados democráticos também usaram e venderam tecnologia avançada para rastrear e/ou vigiar os cidadãos, espalhar desinformação e enfraquecer a participação cívica e política dos cidadãos”, nota o “The Unfreedom Monitor”, da Global Voices.
Em resumo, a evolução tecnológica facilitou a criação de sociedades vigiadas.
Texto de Pedro Fonseca. Foto de Global Voices.