Já tínhamos a pandemia, pretexto para a proliferação de notícias falsas ou deliberadamente enganadoras e de teorias da conspiração. Juntou-se a isso a invasão da Ucrânia. No lado positivo: este foi um ano em que se aprenderam algumas coisas nos bastidores da desinformação.
1 – Especialistas autoproclamados em Covid podem tornar-se autoproclamados especialistas da Ucrânia
Em Junho, uma análise da NewsGuard revelou que 91 sites de media social que foram identificados em 2021 por espalharem informações falsas sobre a Covid estavam a disseminar informações falsas sobre a guerra na Ucrânia.
O Detector de Rumores também notou esse fenómeno após a invasão da Ucrânia a 24 de Fevereiro. A ideia de laboratórios secretos na Ucrânia, por exemplo, vinha sendo propagada, entre outros, por utilizadores francófonos da Internet já conhecidos por espalharem informações falsas sobre a Covid – como o Youtuber Silvano Trotta, também conhecido por ter espalhado, antes de 2020, muitas outras teorias da conspiração.
Foi a demonstração, para quem duvidasse, de que não se tem escrúpulos em se intitular “especialista”… ou ir na direcção em que se sente que há um filão a ser explorado.
2 – A desinformação pode ser lucrativa
Também não foi algo que descobrimos no ano passado. Mas 2022 recordou isso graças a Alex Jones, um dos influenciadores de extrema-direita mais poderosos do mundo da língua inglesa. Processado por difamação pelos pais de crianças mortas em escolas, Jones sofreu uma sucessão de reveses na justiça neste ano, o que deu a oportunidade de lembrar que era muito bem pago. Desde 2013, arrecadou milhões de dólares por ano – o valor exato é desconhecido – com a venda de “suplementos nutricionais”, “gotas para limpeza pulmonar”, “pílulas de protecção da próstata” e outros produtos “naturais”. No início da pandemia, também vendeu produtos de “prata coloidal” contra o coronavírus – incluindo uma pasta dentífrica.
3 – Se acredita numa teoria da conspiração, acredita noutras
Este terceiro ponto também não é uma descoberta (falámos disso em 2014), mas a invasão da Ucrânia revelou factos preocupantes. De acordo com uma sondagem EKOS de Março a 1.035 canadenses, aqueles que não foram vacinados tinham 12 vezes mais hipóteses de acreditar na justificação do presidente russo para invadir a Ucrânia. Especificamente, 26% dos não vacinados disseram que a invasão da Ucrânia foi “justificada” e 35% estavam indecisos. Em comparação, apenas 2% dos canadenses que receberam três doses da vacina disseram apoiar a invasão e 4% disseram não ter opinião.
4 – A desinformação pode matar
Nos Estados Unidos, quanto mais conservador é um estado, mais isso afecta a esperança de vida da sua população em idade laboral, revela um estudo publicado em Dezembro. Da mesma forma, sem surpresa, um estudo confirmou em Agosto que ser exposto à desinformação sobre as vacinas aumenta a hesitação vacinal e, portanto, reduz a intenção de se vacinar. Recorde-se que no final de 2021, um ano após a derrota de Donald Trump, os condados que votaram em Trump tinham uma taxa de mortalidade por Covid em média três vezes superior à dos que votaram em Biden.
5 – A desinformação pode levar a ameaças de morte
Como vimos desde o início da pandemia, não são apenas os jornalistas, estrelas de TV ou políticos que recebem ameaças nas redes: os cientistas também. Um dos mais visíveis durante a pandemia, Anthony Fauci, que acaba de anunciar o seu afastamento da direcção do National Institute of Allergy and Infectious Diseases (EUA), foi questionado no final do ano se tinha a sensação de que a sua vida estava em perigo. “Claro”, disse ele, lembrando que agora está sempre acompanhado de segurança. A desinformação “desencadeia muito ódio de pessoas que não têm ideia do motivo porque odeiam – elas estão a odiar porque alguém está a tuítar sobre isso”.
Em Setembro, a revista Nature escreveu em editorial que universidades e centros de investigação deviam tomar medidas imediatas para defender e proteger os seus investigadores quando enfrentarem ataques e assédio online. Até agora, eles reagiram um pouco tarde, ou não reagiram, acusa a revista.
6 – A desinformação pode ser contagiosa
Nos Estados Unidos e na Europa, os especialistas estão a preocupar-se com o facto de que a retórica anti-vacina tão forte durante a Covid esteja a ter um efeito de “contágio” noutras campanhas de vacinação, especialmente na vacinação infantil.
É muito cedo para dizer se têm razão, mas há pequenas baixas aqui e ali nas taxas de vacinação, acompanhadas de testemunhos de médicos que sentem estar a lidar com pais hostis mais frequentemente. Em 14 de Julho, a OMS e a Unicef (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) publicaram um relatório mostrando uma queda preocupante, em 2021, na taxa de vacinação infantil em diversos países. O relatório aponta para uma combinação de factores, incluindo a pandemia – que interrompeu as cadeias de suprimentos de saúde –, conflitos armados na África e campanhas de desinformação um pouco por todo o lado.
7 – O clima também se pode tornar um campo de batalha
No Twitter, após as mensagens racistas e anti-semitas, agora são as mensagens de negação da realidade das mudanças climáticas que se multiplicaram desde a mudança de proprietário. Dito isto, não é um “crescimento” que dependa apenas do bilionário. Uma investigação publicada em Novembro passado observa que o aumento da “polarização ideológica” foi particularmente forte durante as semanas em torno da conferência climática da ONU em Novembro de 2021.
De acordo com uma análise do grupo Media Matters publicada a 8 de Dezembro, várias emissores conhecidos de informações falsas sobre o clima viram as suas audiências dispararem nas últimas semanas. Na verdade, assim como houve “super-propagadores” de desinformação sobre a Covid, existem também uns 10 para a desinformação climática, respondendo sozinhos por um quarto dos conteúdos cépticos recentes sobre o clima.
No seu relatório publicado na Primavera passada, o IPCC observou, pela primeira vez, os impactos da desinformação na acção climática. Tratava-se de um estudo do sociólogo americano Robert Brulle, que estima que 2 mil milhões de dólares foram gastos em actividades de lobby no Congresso dos Estados Unidos entre 2000 e 2016 para influenciar as políticas ambientais.
8 – Ucrânia, terreno fértil para descodificar a desinformação
Se a invasão da Ucrânia foi um terreno fértil para a desinformação, também foi um terreno fértil para descodificar os seus mecanismos. Por exemplo, entre a lenda dos laboratórios americanos “secretos” na Ucrânia ou a dos cadáveres falsos, os desinformadores russos ou pró-russos têm sido tão activos que muitas vezes se contradizem nas suas próprias histórias. Mas, de tanto procurar uma lógica, perde-se de vista a razão de ser dessa enxurrada de informações falsas, escreve um investigador: “semear tanta dúvida sobre o que é verdadeiro que isso paralisa as pessoas sobre as decisões a serem tomadas”.
Notamos aqui um parentesco com a conhecida “estratégia da dúvida” que se refere às tabaqueiras dos anos 1960: uma estratégia de relações públicas que consistia em criar a ilusão de que ainda havia um debate científico sobre o facto de o tabaco aumentar ou não o risco de cancro. Uma estratégia que foi depois assumida pelas empresas petrolíferas, para criar a ilusão de um debate sobre a influência humana no clima.
9 – A vez do TikTok
Durante grande parte dos anos de 2010, a investigação científica sobre a desinformação concentrou-se principalmente no Facebook, YouTube e Twitter. Recentemente, ela interessou-se pelo TikTok. E sem surpresa, essa plataforma, particularmente adoptada por adolescentes, acaba por ser um ninho de desinformação. Desde Março passado, uma experiência conduzida pela NewsGuard revelou que, a partir de uma nova conta, levava apenas 40 minutos a receber conteúdo falso ou enganador sobre a Ucrânia.
Não é difícil encontrar vídeos de curas milagrosas ou dietas questionáveis. E outras experiências realizadas este Verão ou Outono revelaram altas percentagens de desinformação sobre tópicos como a Covid ou as eleições intercalares nos EUA. Um fenómeno ainda mais danoso, por se saber que a plataforma é utilizada como motor de buscas por muitos jovens.
10 – E não perder a Google de vista
Sites especializados em notícias falsas sobre Covid e política receberam milhões de dólares em receitas publicitárias da Google, revelou a revista americana Pro Publica este Outono. A Google anunciou uma política há dois anos de que recusaria anúncios que fizessem “alegações duvidosas e perigosas”, nomeadamente na saúde e sobre eleições. Mas a análise feita pelos jornalistas revela duas ressalvas: por um lado, esses anúncios têm maior probabilidade de enganar o algoritmo do Google se aparecerem “em idiomas diferentes do inglês”. Por outro lado, esses anúncios aparecem em sites que publicam explicitamente informações falsas sobre saúde ou eleições.
Por Pascal Lapointe (Agence Science-Presse).