Há 11 anos, cofundei a primeira agência de jornalismo investigativo do Brasil, a Agência Pública, num momento em que a disrupção do jornalismo industrial estava apenas a começar. Desde então, milhares de jornalistas foram demitidos de empresas de media tradicionais no Brasil. Como uma organização sem fins lucrativos cuja missão é apoiar o jornalismo independente, sentimo-nos responsáveis ​​por ajudar outras pessoas a criarem os seus próprios meios de comunicação. Uma década depois, o Brasil está vivendo um “boom” de startups de notícias, de iniciativas de jornalismo local e comunitário a organizações digitais regionais, e até empresas nacionais com audiências comparáveis ​​às marcas centenárias.

Natalia Viana

Há alguns anos, alguns destes empreendedores decidiram que estava na altura de unir forças para criar uma associação. Alguns haviam tentado entrar em associações comerciais tradicionais, como a Associação Nacional de Jornais (ANJ), sem sucesso; outros sentiram que as nossas necessidades e angústias eram muito diferentes das de empresas de jornalismo tradicional.

O Brasil sempre teve um mercado concentrado, com quatro grupos mediáticos responsáveis por 70% da audiência na TV — num país de dimensões continentais e mais de 210 milhões de habitantes. Éramos novatos liderando modelos de negócios promissores e estávamos motivados a renovar a indústria jornalística, proporcionando mais diversidade ao sector e oferecendo uma perspectiva a jovens repórteres. É por isso que, há um ano, fundámos a Ajor (Associação de Jornalismo Digital).

Só havia um problema: teríamos que fazer política.

E, francamente, não somos muito bons nisso.

O pagamento por conteúdo de notícias foi um acréscimo de última hora a um projeto de lei cujo objectivo declarado é mitigar os efeitos da desinformação. A “Proposta de Lei (PL) das Fake News” forçaria os gigantes da tecnologia a terem escritório no Brasil e a serem mais transparentes e responsáveis ​​sobre os seus utilizadores no país, bem como sobre as suas acções de combate à desinformação. Além disso, campanhas massivas e automatizadas de manipulação seriam criminalizadas. Mas, embora pareça haver um consenso de que as plataformas de media social devem ser regulamentadas, jornalistas brasileiros, como eu, receiam sobre o pagamento por notícias.

Há um ano, fui eleita presidente da Ajor. Por isso, quando o debate sobre a regulamentação das plataformas surgiu e quando a versão final da PL foi apresentada, em Março deste ano, fui compelida a estudar a lei e a tirar as minhas próprias conclusões.

Durante o processo de entender a fundo o projecto, fomos acusados ​​de “antijornalismo” e de defender os interesses da Google e da Meta/Facebook. Ambas as empresas, através dos seus projectos de jornalismo, apoiam a Ajor (assim como apoiam projectos relacionados com a media tradicional no Brasil). Isso, claro, nunca me impediu, ou a outros membros da Ajor, de criticarmos abertamente as Big Tech.

Para mim, as media sociais devem ser regulamentadas. Quanto antes, melhor. Também sou a favor de tributar as plataformas para que elas devolvam parte dos lucros que tiram da nossa sociedade. Mas, como em tudo, o diabo está nos detalhes.

Na Austrália, onde uma lei semelhante foi aprovada, as especificidades dos acordos são nebulosas e as empresas, de tecnologia e de media, não prestam contas. Não se sabe, por exemplo, se o dinheiro está a ser usado em jornalismo e com os jornalistas, ou se está apenas a enriquecer os executivos de grupos mediáticos. E, embora emissoras e organizações públicas tenham recebido grandes pagamentos, iniciativas independentes e focadas no jornalismo de comunidade não viram nenhum investimento.

No Brasil, o projecto de lei mencionava que empresas jornalísticas receberiam direitos autorais e mencionava o “jornalismo profissional” como uma linha divisória entre o conteúdo que deveria ou não ser pago – um conceito que todos sabemos que é difícil de definir. Outros detalhes caberiam ao governo federal controlado por Jair Bolsonaro, presidente que bateu recordes de retaliação contra jornalistas.

Actores como a Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos criticaram a forma apressada como o pagamento por notícias foi inserido no projecto.

As organizações de jornalismo também estão divididas. Enquanto 43 empresas de media tradicional formaram uma coligação para apoiar o pagamento, outras 50 organizações, incluindo a Associação de Jornalismo Investigativo (Abraji), a Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) e o Fórum Nacional para a Democratização da Comunicação, defenderam que a obrigatoriedade do pagamento fosse excluída do projecto de lei e debatida posteriormente. A Ajor manifestou-se em defesa de uma discussão mais ampla, que abordasse os “desequilíbrios” entre as pequenas e médias iniciativas de jornalismo e os conglomerados de media tradicional.

Na prática, o projecto só oficializa acordos que já acontecem no Brasil. Numa tentativa de travar a regulamentação, tanto a Google quanto o Facebook lançaram programas para o pagamento de empresas de media. Como na Austrália, os negócios são feitos à porta fechada, os critérios não são públicos e ninguém pode monitorar para onde o dinheiro está indo. A maioria das startups de media digital nunca foi convidada a participar, e cada um dos mais de 100 jornais que aderiram ao Google

Destaques foi obrigado a assinar um termo de confidencialidade que impede negociações colectivas e conversas transparentes dentro do sector. Além disso, empresas que comprovadamente espalham desinformação foram incluídas entre os primeiros parceiros. Enquanto os seus conteúdos estão a ser promovidos com o selo de “jornalismo de alta qualidade”, muitos veículos digitais menores foram deixados para trás.

Existem outras maneiras de fazer as coisas. Algumas delas foram sugeridas pela própria Google. Num recente simpósio de jornalismo, Richard Gingras, vice-presidente de notícias da empresa, sugeriu que as plataformas deveriam ser tributadas e que o dinheiro alimentasse um fundo público. Essa solução seria problemática se um governo como o de Bolsonaro decidisse para onde iriam os recursos. Mas, se fosse bem implementado, os fundos também poderiam permitir que o mercado brasileiro se tornasse mais diversificado, através do suporte público à media local e independente.

Outros modelos poderiam imitar os fundos que já apoiam o sector cultural no Brasil, como o Fundo Setorial do Audiovisual, da Agência Nacional do Cinema (Ancine), instituição governamental responsável pela regulação e desenvolvimento da indústria cinematográfica. Os seus recursos vêm de impostos sectoriais e são direccionados para a produção local de filmes de alta qualidade. Mais uma vez, essa solução não está livre do risco de influência política ou de corrupção.

Nenhuma solução é ideal. Mas a pior coisa que os jornalistas podem fazer é abster-se e deixar os empresários de media e as plataformas decidirem entre si.

A solução não deve permitir que as Big Tech permaneçam livres e sem regulamentação, nem deve forçá-las a pagar os mesmos empresários de grandes empresas mediáticas que sempre fizeram lobby contra a diversidade do sector. Nalgum lugar entre os modelos – e com amplo e transparente debate público – há um meio-termo a ser encontrado.

Mas, isso nunca acontecerá se os jornalistas não participarem da conversa. O futuro da nossa profissão, e das nossas democracias, está em jogo.

Texto de Natalia Viana, publicado originalmente pelo Nieman Lab. Tradução de Fernanda Giacomassi, adaptação de Pedro Fonseca. Reproduzido com autorização da autora. Fotos: Thandy Yung/Unsplash, Natalia Viana.