A recolha de metadados pelas operadoras de telecomunicações pode contribuir para a identificação de criminosos e protecção de vítimas. No entanto, essa recolha e o acesso à “pegada digital” pelas entidades judiciais “deve ser feita de forma (precisa) que obste a que dados de utilizadores sem qualquer conexão com o caso concreto sejam ‘vazados’ e divulgados ao público” ou abusados de outras formas. [As recentes decisões do Tribunal Constitucional apontam alguns desses potenciais abusos – ver acórdãos 268/2022 e 382/2022].
Num caso de 2016, Marcelo Rebelo de Sousa ainda não era Presidente da República por alguns dias mas o seu endereço serviu de exemplo para demonstrar como a obtenção generalizada dos metadados pelas autoridades pode afectar inocentes.
A análise do caso e do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), de Junho de 2016, foi feita por Emanuel Viveiros, mestrando de Segurança da informação e direito do ciberespaço, na Cyberlaw by CIJIC, revista do Centro de Investigação Jurídica do Ciberespaço da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.
O acordão relaciona-se com um recurso interposto pelo Ministério Público (MP) para que as operadoras de telecomunicações cedessem dados de tráfego recolhidos na área geográfica de Cascais a 9 de Janeiro de 2016, no âmbito de uma investigação de um crime de roubo e posse de arma proibida, numa residência assaltada em que “estavam três pessoas, tendo uma delas sido golpeada com recurso a uma arma branca”.
O MP requereu “dados relativos a 19 (!) estações base, todas elas sita no centro de Cascais. Ao invés, pensamos que o MP devia, num primeiro momento, oficiar as operadoras de telecomunicações no sentido de informar qual a estação base que têm instalada mais perto da morada onde se deu o crime. É que os telemóveis tendem sempre a se conectar à estação base com melhor sinal e, em meios urbanos, atenta a diversidade de obstáculos para a propagação do sinal de rádio, o melhor sinal costuma ser o sinal que está a menor distância”.
“Este pequeno passo prévio”, refere o autor, iria reduzir de 19 para três as antenas visadas, assim como “reduzir drasticamente” os dados a reportar ao processo e nem “passaria sequer pelo crivo do Juiz de Instrução”.
O TRL concluiu que “à hora indicada pelo MP, ‘ainda haverá no centro de Cascais muita gente acordada bem como de que o tráfego era pedido para 19 (dezanove) antenas das redes telemóvel situadas no Centro de Cascais, não será difícil de calcular em muitos milhares os dados que constariam na tal listagem’, considerando que, ao diferir tal diligência, estaria a permitir um ‘verdadeiro arrastão’ de dados, o que não é permitido à luz do direito processual penal vigente, porquanto o Ministério Público deve proceder à recolha de prova ‘de forma fina, isto é como na pesca à linha ou, quanto muito, como na pesca de cerco, mas nunca como na pesca de arrastão, em que nem tudo o que vem à rede é peixe'”.
O TRL vai mais longe e, na terminologia do autor, deu mesmo “um exemplo concreto daquilo que presumimos ser, na linguagem empregue pelo Tribunal, ‘espécies protegidas'”, ao notar a “existência de um honorável cidadão – que presentemente até goza de foro e prerrogativas especiais nesta matéria – que veria com grande e séria probabilidade o seu tráfego de dados do telemóvel figurar na listagem pedida pelo MP”.
A habitação privada do Presidente da República está “a escassos metros da residência assaltada nos autos (…) e das antenas de que o MP pretende o tráfego de dados”.
A 9 de Janeiro de 2016, Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) não era Presidente da República – a eleição ocorreu em 24 de Janeiro seguinte e a tomada de posse a 9 de Março. No entanto, “estava-se em plena recta final da campanha eleitoral para as presidenciais, bem se sabendo que o então candidato MRS é pessoa que dorme pouco”.
A referência ao Presidente “é exemplificativa do perigo a que o deferimento deste tipo de requerimento de prova conduziria”. No entanto, o autor do artigo considera “que o facto de a recolha de dados pretendida incidir sobre um momento em que o possível ‘alvo’ dessa recolha é mero candidato à Presidência da República não tem relevância jurídica. Admitiríamos o contrário caso o Professor Marcelo fosse, à data, mais do que mero candidato à Presidência”
Republicação de artigo datado de 31 de Maio de 2021. Foto: NASA/JPL-Caltech (CC).