Denunciando o “silenciamento” da media independente pelas autoridades russas e reiterando o seu apoio à liberdade e ao pluralismo dos media, a União Europeia (UE) “baniu” dois meios de comunicação russos em Março de 2022. Essa aparente contradição entre uma declaração de princípio e uma acção concreta pode ser resolvida. Embora a proibição possa ser juridicamente justificada como uma medida destinada a suprimir a “propaganda de guerra”, as instituições europeias não devem tentar justificá-la apontando para o histórico de “desinformação” ou simplesmente “propaganda” desses meios. Para responder às questões legítimas de duplicidade de critérios que surgirão na esteira do inevitável “whataboutism“, deve-se realçar que as medidas da UE diferem decisivamente de qualquer censura autoritária em virtude do carácter da União como comunidade de direito.
A “proibição” da RT e da Sputnik na UE
Desde 2 de Março, é proibido “transmitir […] qualquer conteúdo” dos meios de comunicação patrocinados pelo Estado russo RT e Sputnik (Art. 2f. do Regulamento (UE) n.º 833/2014, conforme alterado em 1 de Março de 2022 pelo Regulamento (UE) 2022/350 do Conselho; acompanhado da Decisão (PESC) 2022/351 do Conselho, de 1 de Março de 2022, que altera a Decisão 2014/512/PESC; com base no artigo 215.º do TFUE e no artigo 29.º do TUE, respectivamente). Em 23 de Fevereiro de 2022, a editora-chefe da rede de notícias de televisão em inglês RT, Margarita Simonyan, foi sancionada com proibição de viajar e congelamento de activos.
A Comissão Europeia aponta para a “propaganda massiva e desinformação” que estes meios fornecem para o ataque russo à Ucrânia e para uma “ameaça significativa e directa à ordem e segurança públicas da União”. O Conselho destaca que “a fim de justificar e apoiar a agressão à Ucrânia, a Federação da Rússia tem vindo a desenvolver de forma contínua e concertada acções de propaganda dirigidas à sociedade civil da União e dos países vizinhos, distorcendo e manipulando seriamente os factos […] canalizadas através de diversos meios de comunicação social sob o controlo directo ou indirecto permanente dos dirigentes da Federação da Rússia”. Tendo em conta a “gravidade da situação”, o Conselho e a Comissão consideram as medidas compatíveis com a liberdade de expressão consagrada no art. 11 da Carta dos Direitos Fundamentais (CFR). Elas “devem ser mantidas até que a agressão contra a Ucrânia termine e até que a Federação Russa e os seus meios de comunicação associados deixem de realizar acções de propaganda contra a União e os seus Estados-Membros”.
O alcance da “proibição” não é evidente no regulamento, mas pode ser esclarecido pela interpretação. É mais apertado do que se poderia esperar. O Art. 2f do regulamento proíbe qualquer “transmissão” desses meios de comunicação. O regulamento em si não define “broadcasting”, mas este é um termo usado na lei geral de media europeia: de acordo com o art. 1 (1) (e) e (f) da Directiva Serviços de Comunicação Social Audiovisual (AVMSD), refere-se a um “serviço de media audiovisual linear”, ou seja, televisão. Que o mesmo significado deve ser atribuído a “broadcasting” no regulamento que proíbe a RT e a Sputnik fica claro nos exemplos que lista: “broadcasting” é definido no regulamento para incluir “transmissão ou distribuição por qualquer meio, como cabo, satélite, IP-TV, fornecedores de serviços de Internet, plataformas ou aplicações de partilha de vídeo na Internet”. Além disso, qualquer “licença de transmissão ou autorização, acordo de transmissão e distribuição” da RT e da Sputnik deve ser suspenso. Essas licenças são necessárias para canais de TV, mas não, por exemplo, para operar sites. De acordo com o preâmbulo do regulamento, a proibição expressamente não “impede que esses meios de comunicação e os seus funcionários realizem outras actividades na União além da radiodifusão, como investigação e entrevistas”. Pode-se acrescentar que, de acordo com o regulamento adoptado, também não é proibido operar sites, desde que eles não “transmitam ou […] permitam, facilitem ou contribuam de outra forma para difundir” o conteúdo proibido.
A justificação viável: propaganda de guerra
A proibição de transmitir estes meios de comunicação patrocinados pelo Estado russo pode ser legalmente justificada como implementação da proibição de propaganda de guerra sob a lei internacional e europeia, como foi sugerido pela vice-presidente da Comissão Europeia, Věra Jourová: “Todos nós defendemos a liberdade de expressão, mas não pode ser abusado para espalhar propaganda de guerra”.
A proibição de propaganda de guerra está consagrada no art. 20 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (ICCPR), e no art. 2 da Convenção Internacional sobre o Uso da Radiodifusão na Causa da Paz. Quase todos os estados do mundo ratificaram o primeiro e também constitui direito internacional consuetudinário e, como tal, vincula a UE. Considerando a ratificação do ICCPR por todos os Estados-Membros da UE (com poucas reservas), a proibição também pode ser considerada um princípio geral do direito da UE (ver em detalhe: Baade, Kriegspropaganda, Europarecht 2020, 653). Defender e apoiar uma guerra de agressão é, portanto, proibido pelo direito internacional e europeu. Que a invasão russa da Ucrânia constitui tal agressão foi confirmado não apenas por vários comentadores da academia mas também pela Assembleia Geral da ONU que votou esmagadoramente para condenar a Rússia numa resolução da União pela Paz. A propaganda de guerra pode ser feita por meio de informações falsas ou enganadoras, mas isto não é constitutivo da proibição. A defesa de uma guerra agressiva é proibida, mesmo que a opinião em apoio a tal guerra seja baseada apenas em informações inteiramente verdadeiras.
Proibir a RT e a Sputnik por propaganda de guerra pode contar com a prática anterior entre os Estados-Membros da UE, que já foi confirmada como lícita pela Comissão Europeia e pelo Tribunal de Justiça Europeu (TJCE). Desde 2015, a Lituânia e a Letónia suspenderam várias vezes a transmissão do canal de televisão em russo “RTR Planeta”. Essas decisões foram baseadas no art. 3 (4)(a)(i) e 6 da AVMSD que permitem a suspensão de transmissões de televisão se incitar ao ódio com base em determinados critérios. A Comissão Europeia confirmou que a Lituânia e a Letónia consideraram correctamente os programas de TV que apelavam à ocupação e “aniquilação” de vários estados como propaganda de guerra que justificava a suspensão das emissões, mesmo tendo em conta a restrição da liberdade de expressão de acordo com o art. 52 da CFR. Em Baltic Media Alliance, o TJCE reconheceu que o combate ao incitamento ao ódio em razão da nacionalidade na forma de propaganda de guerra constitui um objectivo legítimo de política pública. Também confirmou sanções direccionadas contra Dmitrii Konstantinovich Kiselev, que havia sido nomeado chefe da agência de notícias “Rossiya Segodnya” do Estado Federal da Rússia por “propaganda do governo apoiando o envio de forças russas na Ucrânia”.
A justificação problemática: desinformação e propaganda
Ainda que a “proibição” da RT e da Sputnik seja, assim, lícita, deve-se tomar muito cuidado para que a justificação usada não estabeleça um precedente que se torne problemático como inclinação escorregadia mais tarde. A justificação para a proibição imposta à RT e à Sputnik na situação actual não se pode basear apenas no caráter dos seus conteúdos como “propaganda” e nem mesmo como “desinformação”. Embora a RT e a Sputnik tenham sido acusadas de propaganda e desinformação (e com razão), bani-las por causa disso teria sido um argumento legal ténue pelas razões seguintes.
Perante o TJCE, em 2017, Kiselev argumentou que “a propaganda é protegida pela liberdade de expressão”. Até certo ponto, ele estava certo. A propaganda procura influenciar as atitudes e acções das pessoas. O que a distingue do discurso político legítimo, mas também da desinformação, é que tem uma relação instrumental com a verdade. A propaganda pode empregar informações falsas, mas também inteiramente verdadeiras para os seus fins, o que é legalmente relevante. Declarações falsas podem ser reguladas mais facilmente pela lei dos direitos humanos, mesmo de forma repressiva, para proteger interesses individuais e públicos suficientemente importantes, incluindo segurança nacional e integridade territorial (cf. Art. 10 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos). Opiniões (ou seja, julgamentos de valor) e declarações verdadeiras geralmente gozam de uma protecção muito mais forte. O simples conceito de “propaganda” compreende, portanto, declarações que são, sem dúvida, protegidas pela liberdade de expressão e não poderiam ser legalmente regulamentadas por si só.
Além disso, muito do conteúdo da RT e da Sputnik provavelmente terá que ser caracterizado como desinformação “enganadora” em vez de totalmente “falsa”. Declarações enganadoras, no entanto, não usam informações falsas. Elas enquadram e apresentam informações que são, estritamente falando, verdadeiras de modo a tornar os seus destinatários propensos a tirarem conclusões falsas delas. Por exemplo, é certamente enganador quando a filial alemã da RT apenas relata o resultado da votação da Assembleia Geral da ONU acima mencionada de maneira improvisada no final de um texto intitulado “China na reunião da ONU: abandona mentalidade de bloco e leva a sério os interesses de segurança da Rússia”.
O problema de regular a desinformação enganadora é que seleccionar quais informações verdadeiras relatar e como enquadrá-las não é apenas o cerne da liberdade dos media, mas também um julgamento normativo – uma opinião (ver também: Baade, Don’t Call a Spade a Shovel, Verfassungsblog). As opiniões sobre questões politicamente delicadas, no entanto, gozam do mais alto nível de protecção sob a lei dos direitos humanos, mesmo aquelas que “ofendem, chocam ou perturbam o Estado ou qualquer sector da população”, como o Tribunal Europeu de Direitos Humanos reitera há décadas . Proibir meios de comunicação inteiros de transmitir porque tendem a ser enganadores nesse sentido geralmente não seria possível sob a lei dos direitos humanos, mesmo que esses meios se inclinem para a posição de um governo autocrático. Se a influência do Estado no processo editorial, que há muito se sussurra, puder ser comprovada, isso pode justificar uma avaliação diferente.
Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, isso transformou a desinformação e propaganda da RT e da Sputnik sobre a Ucrânia em propaganda de guerra, que a UE pode restringir legalmente. Embora as artimanhas de guerra e até mesmo a “guerra psicológica” sejam permitidas sob o ius in bello, isso não se aplica à justificativa de uma guerra de agressão em violação do ius contra bellum.
A diferença entre censura autoritária e regulação legítima dos media
É essencial enfatizar a diferença entre a media patrocinada pelo Estado das autocracias e as das democracias, bem como a diferença entre a regulação da liberdade de expressão por esses estados.
A media patrocinada pelo estado em nações democráticas não é apenas legal mas realmente independente; elas podem e relatam as vozes críticas relativas aos “seus” governos. Veja-se na BBC uma menina de 7 anos a perguntar ao primeiro-ministro britânico por que ele teve festas durante o confinamento quando ela perdeu duas festas de aniversário, exigindo um pedido de desculpas – é simplesmente impossível imaginar algo assim sobre o presidente russo na Sputnik ou na RT.
Os conceitos legais usados na proibição da RT e da Sputnik podem parecer semelhantes aos que a Rússia emprega contra a media nacional e internacional. A Rússia teria acesso restrito a meios de comunicação que divulgam “informação deliberadamente falsa” sobre o conflito armado na Ucrânia. Em 4 de Março, a Rússia tornou crime disseminar desinformação sobre as suas forças armadas. Mas há diferenças decisivas. Em primeiro lugar, a nova infracção penal russa parece desproporcional mesmo em abstracto. A imposição de uma pena de prisão de até 15 anos parece totalmente excessiva e cria um efeito desanimador intolerável na liberdade de expressão. Em segundo lugar, e mais importante, qualquer acção tomada contra os meios de comunicação pela UE e seus Estados-Membros está sujeita a revisão judicial por tribunais independentes, de que a RT e a Sputnik se podem valer. Solicitado, o TJCE avaliará imparcialmente se as acções tomadas se baseiam numa base factual sólida, ou seja, se os meios em questão estavam de facto a defender uma guerra de agressão e se a violação da liberdade de expressão é proporcional ao objectivo perseguido, como fez em Kiselev. Embora as acções russas contra os meios de comunicação possam ir ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos (ECHR), que condenou a Rússia repetidamente por abusar das cláusulas de restrição da Convenção para fins ulteriores em violação do art. 18 do ECHR, nenhuma revisão judicial independente estará disponível internamente na Rússia. Aqui, como noutros aspectos, é o carácter da UE como uma comunidade de direito que confere legitimidade às suas acções e distingue a proibição da RT e da Sputnik da censura autoritária.
Adaptado do artigo original de Björnstjern Baade, publicado no Verfassungsblog (CC).