Como se questionou na primeira parte deste artigo, “o que leva alguém a comprar cripto-arte e a gastar milhões no que é essencialmente uma ligação a um ficheiro jpeg“. Para Aaron Hertzmann, da University of Washington (EUA), “na cripto-arte, há um contrato implícito de que o que se está a comprar é único. O artista faz apenas um destes tokens, e o único direito que se tem quando se compra a cripto-arte é dizer que se possui essa obra. Ninguém mais pode. Note-se, porém, que este não é um direito legal, nem existe qualquer outra obrigação além dos costumes sociais. No entanto, o valor vem do artista criar a escassez. (…) [A] arte é, fundamentalmente, uma actividade social. Quanto mais as nossas vidas sociais são vividas online, mais pode fazer sentido para algumas pessoas terem as suas colecções de arte também online – com ou sem blockchain”.

Uma outra explicação para este interesse é dada por Judy Mam, co-criadora com Beatriz Ramos do Dada.art, “a maior colecção de arte digital rara pronta a ser convertida em NFTs”.

“Como artista comercial de sucesso, Beatriz sentiu que os artistas capturam apenas uma fracção do valor que criam para marcas e empresas. Artistas independentes lutam para ganhar a vida num mercado de arte baseado em especulação e enormes investimentos para coleccionadores, mas sem ‘royalties’ nas vendas secundárias para os artistas, e que é basicamente um ‘star system’ onde apenas um punhado de artistas (principalmente homens brancos) lucram. Os artistas em geral criam um valor enorme para a sociedade, mas não são remunerados de maneira justa ou adequada. Propusemo-nos acabar com o paradigma do artista faminto”, recorda Mam.

A intervenção pode ter diferentes abrangências, como sucede com Tais Koshino, do DiverseNftArt, “uma comunidade para artistas NFT Mulheres, BIPOC e LGBTQIA+” e um dos projectos apoiados pela plataforma Hic Et Nunc, lançada em Março de 2021 por Rafael Lima.

Apesar das críticas a este “desastre ambiental“, a proliferação de NFTs vai das imagens digitais de Alexis Christodoulou a aves em extinção nas Seychelles ou à colecção “Messiverse” do futebolista Lionel Messi.

Pablo Rodriguez-Fraile fundou o Museum of Crypto Art. O Japão teve a primeira exibição de NFTs na CrypTOKYO. Em Portugal, Bruno Maçães, autor e ex-secretário de Estado, leiloou o NFT “Geopolitics”, o artista Leonel Moura disponibilizou 15 NFTs e o humorista César Mourão viu a “oportunidade” para criar “um emoji de máscara mal posta“.

O British Museum aproveitou a oportunidade para vender NFTs de 200 obras de Katsushika Hokusai – incluindo a famosa “The Great Wave” -, em associação com “startup” LaCollection, aproveitando a exposição “Hokusai: The Great Picture of Everything“.

No cinema, o primeiro documentário cripto-financiado “The Underground Sistine Chapel“, realizado por Yohann Grignou e Antoine Breuil sobre o cripto-artista Pascal Boyart (PBoy), teve uma oferta de NFTs antes da estreia.

Na música, os Kings of Leon anunciaram o lançamento do seu novo disco “When You See Yourself” também como NFT com ofertas de acesso exclusivo a material audiovisual.

Em Maio, a Merriam-Webster anunciou a venda da definição de NFT no seu dicionário como NFT, enquanto no jornalismo, a Quartz vendeu o que se crê ser o primeiro artigo noticioso em NFT, com o Nieman Journalism Lab a escrever sobre “um dos eternos truísmos do jornalismo: o valor das notícias como um produto raramente corresponde ao que o mercado pagará por elas”. O NFT da Quartz ultrapassou os 1.800 dólares mas uma imagem da agência Associated Press conseguiu mais de 180 mil dólares.

“É uma prova de conceito que os NFTs por si só podem financiar uma pequena empresa de media”, afirmou Kyle Chayka sobre a sua newsletter diária Dirt, que obteve 33 mil dólares numa semana, dos quais 20 mil no primeiro dia.

No imobiliário, a primeira casa digital foi colocada à venda por Krista Kim. A “Mars House” podia ser complementada com os móveis virtuais do designer Andrés Reisinger, que atingiram os 450 mil dólares em apenas 10 minutos num leilão online.

Fora do circuito de revenda está “Classified“, um NFT com os 548 documentos classificados, entre 1986 a 2015, divulgados por Edward Snowden.

No domínio dos casos estranhos, a tenista profissional Oleksandra Oliynykova vendeu o seu “primeiro e último NFT” com “os direitos vitalícios de parte do seu braço direito”, enquanto “o primeiro Non-Fungible Toilet Paper” também foi vendido.

Cripto-entusiasmo financeiro e empresarial

O interesse nos NFTs cativou entidades do mercado financeiro. A Visa adquiriu um dos avatares digitais da colecção CryptoPunk por quase 150 mil dólares, com um dos responsáveis da empresa a antecipar que “os NFTs vão desempenhar um papel importante no futuro do retalho, media social, entretenimento e comércio”.

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Em Maio, a eBay permitiu a venda de NFTs na sua plataforma, após anunciar que aceitava criptomoedas. É dinheiro digital, é um “novo dinheiro”, como diz Spike Lee, realizador e narrador de “The Currency of Currency”, um anúncio publicitário à CoinCloud. É um dinheiro “positivo, inclusivo, fluido, forte, culturalmente rico. Onde o status é tudo menos status quo”, diz.

Esta “exclusividade no mundo digital” é também reconhecida pela Dirt: “como pessoas racionais da era moderna, ficamos muito ansiosos com os frenesins dos consumidores por bens sem um óbvio valor inerente. Existem as reacções esperadas: os NFTs são uma bolha! Eles são os próximos [peluches] Beanie Babies! Certamente ninguém é ingénuo o suficiente para acreditar que são ‘belas artes’ (excepto esta galeria de Hong Kong). No nosso desespero por explicações credíveis, surgiu uma justificação convincente para os NFTs: eles são símbolos de status. Pelo menos os próprios criadores acreditam que sim”. No entanto, ” talvez a própria história do símbolo de status seja um álibi: os NFTs são investimentos especulativos que aspiram a ser qualquer coisa além de serem apenas investimentos especulativos”.

O objectivo é “cavalgar” a onda, mesmo sem saber onde se irá desfazer, porque os NFTs estão a criar novas oportunidades quando “activos como instrumentos financeiros, imóveis e bens de luxo estão a ser registados imutavelmente na ‘blockchain’. Para as empresas, está na altura de verem os seus dados como um activo. Os NFTs corporativos permitem-lhes fazer isso”.

Eles “criam oportunidades para novos modelos de negócio que não existiam antes“, num apelo às marcas explicado por Frédéric Montagnon, da plataforma de luxo Arianee: “passamos a maior parte do tempo a olhar para ecrãs. Vivemos cada vez mais pela representação digital do mundo do que pelo próprio mundo. Isso significa que, para uma marca, a única representação física se torna muito parcial”. Ora “os NFTs são a oportunidade para as marcas se apropriarem de novos territórios, criando passaportes digitais, representações digitais de um objecto real, até mesmo objectos puramente virtuais”.

As marcas querem captar os “eyeballs” dos consumidores, imersos numa economia da escassez da atenção e interessados em enriquecer com os NFTs, como ilustra Douglas Rushkoff.

“Conheço muitos jovens brilhantes que se podem ter interessado pela ‘blockchain’ por grandes motivos, que agora gastam boa parte do seu tempo e dinheiro a negociar e a especular em tokens da mesma forma que os ‘traders’ de Wall Street especulam em acções, derivativos e até mesmo nas bolsas em que a negociação ocorre. Em vez de terminais Bloomberg, têm Binance ou Hotbit ou Coinbase Pro nos seus ecrãs. E estão a ler notícias e tweets para ver o que está a dar. Assim como os banqueiros que a ‘blockchain’ deveria substituir, estes cripto-entusiastas estão a tentar enriquecer”. Mas, concede, “muitas poucas pessoas estão a ganhar dinheiro com os NFTs”.

A constatação é visível num gráfico da Statista relativo à venda mundial dos NFTs até Março. Com “Everyday”, Beeple consegue mais do triplo do que as três obras seguintes: CryptoPunk 7804, CryptoPunk 3100 e “Crossroads”, também de Beeple.

Uma lista mais recente demonstra a mesma tendência de sucesso restrito, registando valores baixos nalgumas das principais plataformas de venda de NFTs. E “entre os 3.000 maiores coleccionadores de arte, (…) apenas 20% comprou arte online, apesar de 90% visitar sites de galerias”, nota a Artnet.

Mas um movimento financeiro de sucesso dinamizado por artistas não é totalmente novo. Há 30 anos, David Bowie esteve “envolvido em inovação no mundo da finança“, com o seu gestor financeiro Bill Zysblat e o banqueiro David Pullman. Eles idealizaram um “esquema” para rentabilizar o catálogo musical do artista, através da venda dos “Bowie bonds” – ou “Pullman bonds”, como também foram conhecidos.

Basicamente, estas obrigações financeiras davam aos compradores a possibilidade de as rentabilizar nos 10 anos seguintes pelos “royalties” de 25 discos e dos concertos ao vivo, com uma taxa anual fixa. Bowie obteve desta forma 55 milhões de dólares.

Um modelo semelhante está agora a ser dinamizado pelo financiamento do Founders Fund e da Paradigm à plataforma Royal, um “marketplace” de NFTs sobre direitos musicais com retorno do investimento consoante o sucesso dos artistas.

* Texto original publicado no Maputo Fast Forward (aqui, aqui e aqui).