A origem das moedas virtuais como os bitcoins pode ser traçada até há vários séculos atrás, na Micronésia, mas os efeitos mais recentes datam dos últimos anos, nomeadamente desde 2008, quando o desconhecido Satoshi Nakamoto publicou “Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System”.
As possibilidades abertas por esta criptomoeda foram aproveitadas por diversos sectores de actividade, nomeadamente o artístico, com os NFTs. Estes existem há quase uma década, desde 2012, pelo menos. Em 2018, alguém pagou 172 mil dólares por um gato digital da colecção CryptoKitties e “Homer Pepe” foi comprado por quase 40 mil dólares. Foi vendido há uns meses por mais de 300 mil dólares.
Mas foi no início deste ano que uma “obra de arte” como “Everydays – The First 5000 Days”, de Beeple – leiloada pela Christie’s por 69 milhões de dólares – chamou a atenção para o potencial da cripto-arte. “Este ano foi quando vimos realmente os NFTs em geral a explodir e com isso vieram os criadores de memes vender os seus memes”, afirma Don Caldwell, do Know Your Meme.
Fonte: “Crypto fundamentals and NFTs“, Patrick Rivera
O que são os “Non-Fungible Tokens” (NFTs) e como se podem “criar, comprar e vender“? Um “token” é uma chave criptográfica não-fungível, que não “se gasta ou consome com o uso ou com o primeiro uso“. De forma simples, é um conjunto criptográfico único que, como uma moeda, pode trocar de mãos em transacções. Como os bancos centrais controlam a emissão de moeda, a arquitectura “blockchain” regista os NFTs e as transacções para garantir a sua singularidade e posse.
Os NFTs interessaram ao sector artístico por resolverem a falsificação da posse da arte digital. A validação criptográfica garante a singularidade e a pertença da obra de arte a um único proprietário. Mesmo que o NFT seja comercializado, há um – e apenas um – dono da obra.
Há uma outra razão para o interesse nos NFTs, explicou a revista Shifter: são “um efeito colateral da pandemia”, numa análise de Alice Bucknell, co-autora de “Toward a New Ecology of Crypto Art: A Hybrid Manifesto”: “O interesse recente nos NFTs é indissociável do impacto socio-económico e cultural da pandemia e do confinamento. A nossa relação com a arte no último ano foi sobretudo online e por isso houve uma gravitação natural da hierarquia das peças ‘materiais’ sobre as peças ‘imateriais'”.
Coleccionadores do feio
A lógica da posse online foi acompanhada pelos criadores na busca de reconhecimento e retorno financeiro. Os “marchands” da arte (digital) querem comprar em baixa para revender com lucro mas este modelo inovador garante que o autor pode receber uma comissão sempre que ocorre uma transacção de NFTs.
“Gosto da ideia da cultura ser mais valiosa e mais pessoas serem capazes de lucrar pelo seu gosto”, diz o escritor Kyle Chayka, enquanto alguns autores já assumiram o engano relativamente ao potencial dos NFTs perante as aquisições em 2021.
“Mesmo quando os NFTs saíram das manchetes da imprensa tradicional, o número de pessoas que os criavam, adquiriam e comercializavam continuou a crescer”, escreveu-se a propósito do Loot – um projecto de convergência entre a cripto-criação e a economia da criação que Patrick Rivera acredita ser um novo caminho para desenvolver comunidades.
E de comunidades percebe o Twitter, que anunciou a validação dos NFTs para ligar os bens das “carteiras virtuais” ao perfil dos utilizadores. “Isso permite ao Twitter fornecer uma marca de autenticidade e/ou propriedade de quaisquer NFTs exibidos”. Também o TikTok lançou uns “Top Moments”, começando com o artista Lil Nas X, assumindo estar a “explorar o mundo dos NFTs como uma ferramenta” criativa.
“A arte em NFT está para durar”, defende o galerista Vincent Harrison. “É a mesma mentalidade de coleccionador. A beleza da arte digital é que as pessoas não precisam de parar de coleccionar porque nunca ficam sem espaço”. São “acumuladores digitais – o que é bom, porque conheço muitos coleccionadores que têm arte que não podem colocar na parede: eles têm-na guardada. Mas ainda coleccionam só porque gostam de arte”.
Outros é pela “oportunidade financeira”, como o investidor Jamie Burke, para quem a estética “não conta nada. Quanto mais maluco e feio um NFT, melhor”, pelo que mudou da “estética para a memética”. E outros para a bilhética, como pagar 475 dólares por um bilhete em NFT para ver a obra de Beeple na Dreamverse New York, em Novembro.
Quem parece estar melhor apetrechado para lidar com este novo panorama são os jovens, porque “crescemos a brincar nas redes sociais, a assistir a vídeos no YouTube ou a jogar videojogos. Entendemos, desde que crescemos, a negociação de activos digitais num videojogo e a trabalhar para obter [coisas como] armaduras e subir de nível”, diz o artista Victor Langlois. “Isso traduz-se naturalmente para os NFTs, porque é como trocar bens coleccionáveis ou vender arte”.
Mas restam dúvidas entre o seu potencial ou se são mais um esquema do passado.
NFT amigo do artista
Ao ler títulos como “Este programador de 12 anos pode ganhar mais de 400 mil dólares após cerca de dois meses a vender NFTs” ou “Como ganhei 50 mil dólares em três dias com NFTs” parece estar-se perante algo tão legítimo como vender areia no deserto. Mas foi assim que, no último caso, Paul Stamatiou intitulou a sua experiência e explicou como nalguns “marketplaces” – plataformas de venda online – existe “a capacidade dos criadores especificarem uma percentagem de ‘royalties’ ao listar a sua colecção. Isso significa que o criador receberá continuamente o pagamento por qualquer venda dos seus NFTs, mesmo que não esteja envolvido na transacção e seja entre dois outros utilizadores. Isso é incrivelmente amigo do criador”.
Normalmente, “quando alguém compra uma obra de arte física, está a comprar apenas o objecto físico” e não os direitos autorais da obra, que “permanecem com o artista”, explica o Keep It Legal Blog.
Quem “possui uma pintura a óleo original, pode exibi-la em casa ou onde quiser, e pode vender ou emprestar a pintura a alguém, mas não pode fazer cópias dela, vender versões impressas ou fazer novos trabalhos baseados no original”, excepto em casos bem delimitados.
“Os direitos autorais só podem ser transferidos com base num contrato por escrito. Portanto, se o artista concordar em vender-lhe os direitos autorais da pintura a óleo, você terá esses direitos” mas isso apenas “significa que os direitos autorais são separados ou abstraídos do próprio ‘trabalho’ real”.
As “regras que se aplicam às obras de arte físicas aplicam-se à arte digital. O facto de a obra possuir um certificado de propriedade na forma de um NFT não as altera” embora faça emergir novas questões legais. E é natural que se imponham dúvidas: as obras “valem realmente centenas de milhar de dólares“?
O que leva alguém a comprar cripto-arte e a “gastar milhões no que é essencialmente uma ligação a um ficheiro jpeg“, questiona Aaron Hertzmann, da University of Washington (EUA). “Na cripto-arte, há um contrato implícito de que o que se está a comprar é único. O artista faz apenas um destes tokens, e o único direito que se tem quando se compra a cripto-arte é dizer que se possui essa obra. Ninguém mais pode. Note-se, porém, que este não é um direito legal, nem existe qualquer outra obrigação além dos costumes sociais. No entanto, o valor vem do artista criar a escassez. (…) [A] arte é, fundamentalmente, uma actividade social. Quanto mais as nossas vidas sociais são vividas online, mais pode fazer sentido para algumas pessoas terem as suas colecções de arte também online – com ou sem blockchain”.
* Texto original publicado no Maputo Fast Forward (aqui, aqui e aqui).