O jornalismo de qualidade e as reportagens honestas dão factos cruciais ao público. Mas, em vários casos, os “media” (como se intitulam ou registados) desempenharam um papel na produção e distribuição de campanhas de desinformação. Neste artigo, o EU DisinfoLab destaca os exemplos mais prejudiciais de campanhas de desinformação envolvendo os “media” como actores-chave dessas estratégias maliciosas.

Introdução
Este artigo reúne uma dúzia de exemplos recentes de actores e desinformadores que se apresentam como fontes de notícias fiáveis ​​para obterem legitimidade aos olhos do público e influenciar o debate. No geral, essas tácticas enganosas vão desde a criação de veículos e actores inteiramente falsos, como o estabelecimento de sites de notícias falsas e personas falsas, até à inclusão de alguns elementos de autenticidade para os distorcer: corromper jornalistas reais, roubar a sua identidade ou promover a fontes genuínas para amplificar conteúdos enganadores.

Este artigo destaca duas tendências:
Tendência #1: Marcas de notícias estabelecidas disseminam desinformação, com casos notórios como o France Soir ou o papel da media “mainstream” na desinformação eleitoral durante as eleições nos EUA.

Tendência #2: Títulos de “media” online fazem-se passar por fontes credíveis ​​para espalhar desinformação, o que inclui, por exemplo, campanhas de desinformação coordenadas no caso da queda do avião MH17 na Ucrânia.

A lista não é exaustiva pois o objectivo é aumentar a consciencialização sobre o fenómeno.

Estas actividades dificultam o acesso a informações verificáveis. Também mina os jornalistas profissionais que seguem princípios deontológicos restritos de reportagens objectivas e baseadas em factos, poluindo assim um serviço essencial para informar os cidadãos numa democracia em funcionamento.

Tendência #1: marcas de notícias estabelecidas a disseminar desinformação
Uma tendência que aponta para a responsabilidade dos media é o caso de reputadas agências de notícias ou de jornalistas que – deliberadamente ou não – passam de transmissores de informação a agentes de desinformação.

– Descansando na sua anterior credibilidade, as em tempos fiáveis fontes tornam-se disseminadores de desinformação.

A deriva para a conspiração do FranceSoir (desde 2016). Fundado em 1941 como jornal “underground” por jovens líderes da resistência, o FranceSoir (intitulado inicialmente de “France-Soir – Défense de la France”) ficou conhecido como um jornal francês distinto e importante, especialmente entre os anos 1940 e 1960. No entanto, faliu em 2012, até ser comprado e relançado em 2016 como media de notícias apenas online. Quando vários jornalistas foram dispensados ​​no final de 2019, a desinformação, as teorias da conspiração e o conteúdo antivacinas disseminado pelo site aumentaram. Em 2020, o NewsGuard denunciou o meio por não aderir a vários padrões jornalísticos básicos. Em Janeiro de 2021, o Ministro da Cultura francês pediu a um tribunal que re-examinasse o estado do título como meio de informação generalista e de política, embora se pudesse ter sido capaz de mantê-lo, pois jornalistas ainda trabalhavam lá. Em Março de 2021, o YouTube decidiu fechar o canal do FranceSoir por infringir os seus termos de serviço sobre desinformação na saúde em torno do Covid-19 e, alguns meses depois, o canal foi impedido de aceder ao Google Ads, após uma reportagem de investigação transmitida pelo canal público francês sobre o financiamento de sites de conspiração.

– Media dominantes polarizados têm uma maior responsabilidade em partilhar desinformação do que actores estrangeiros malignos.

Media tradicionais ampliando a desinformação sobre as eleições nos Estados Unidos (Outubro de 2020). Um estudo do Berkman Klein Center analisou uma amostra de 5.000 notícias, 5 milhões de tweets e 75 mil “posts” no Facebook para concluir que alguns meios de comunicação de massa americanos e elites políticas foram os principais transmissores da campanha de desinformação de Trump contra os votos por correspondência. Em particular, a Fox News – no centro de muitas controvérsias por espalhar desinformação em temas como a mudança climática e a vacina para a Covid-19 – tem sido uma entidade-chave. Assim, verifica-se que a media social (relativamente às plataformas) e os “trolls” russos (em relação aos actores) apenas desempenharam um papel secundário na propagação desses boatos específicos.

– Os media excessivamente facciosos desempenham um papel activo na disseminação da desinformação.

Cuidado com a media excessivamente política ou facciosa (desde 2018). Na era dos factos alternativos, os meios de comunicação de facções amplificam com frequência a desinformação. Muitos estão familiarizados com o conteúdo falso e enganador proliferado pela Breitbart – especialmente após a desplataformização do vídeo “American Frontline Doctors” a pedir o uso da hidroxicloroquina para curar a Covid-19 – ou por agências de notícias estatais russas como a Sputnik (por exemplo, no apoio à vacina Sputnik V). No entanto, o fenómeno estende-se também a outros países; por exemplo, o Institute for Strategic Dialogue lembrou que, durante as eleições suecas de 2018, “meios de comunicação nacionalistas e populistas e políticos na Polónia espalharam desinformação sobre o governo e a sociedade sueca tanto na própria Suécia como na media de língua inglesa e polaca”.

– Meios de comunicação que espalham desinformação chegam a obter reconhecimento como jornais registados.

Gasp.news & Covid-19 (Abril de 2021). Um relatório de 2021 da Avaaz mostrou que os italianos são os utilizadores não ingleses do Facebook menos protegidos contra a desinformação. Como o país foi fortemente afectado pela pandemia e a subsequente infodemia, o NewsGuard identificou a Oltre.tv como super-propagadora de desinformação da Covid-19 que atingiu aproximadamente 1,5 milhões de utilizadores. Embora o título anticientífico (espalha conspirações sobre as vacinas, curas alternativas ou culpando o governo e Bill Gates) não seja um título registado, uma investigação da Coda mostrou que a Oltre.tv partilha conteúdo semelhante à Gasp.news, que é, por sua vez um jornal online registado ao abrigo da lei italiana. Os dois sites têm a mesma equipa de edição e proprietário (uma empresa de marketing e de comunicação digital), gerindo uma rede de sete sites italianos e páginas do Facebook que amplificam o conteúdo uns dos outros simultaneamente, todos sinalizados pelo NewsGuard.

– Actores da desinformação roubam a identidade de jornalistas genuínos, explorando a sua reputação para espalhar desinformação.

Assumir a identidade de jornalistas para desinformar (Fevereiro de 2021). A Axios publicou um conjunto de notícias de jornalistas cujos nomes, fotos e assinaturas foram roubados por actores malignos para ajudar a dar credibilidade a notícias falsas online. Por exemplo, um repórter diz que a sua identidade foi hackeada para propagar uma conspiração de direita com memes de que o secretário de Defesa dos Estados Unidos planeava fazer “outsourcing” de sistemas para a China; outro tornou-se o amplificador da propaganda do regime pró-iraniano a partir de um Twitter falso. Outra peça adverte que a cobertura dos media é uma maneira rápida, eficiente e menos rastreável de divulgar uma narrativa, garantindo visibilidade e, ao mesmo tempo, fornecendo uma fachada de confiabilidade. Como consequência, os jornalistas reais são cada vez mais visados ​​à custa da sua credibilidade profissional.

Tendência #2: Títulos de “media” online fazendo-se passar por fontes credíveis ​​para espalhar desinformação
De sites maliciosos que se apresentam como fontes de notícias respeitáveis ​​a personas falsas que fingem ser jornalistas ou especialistas, as operações de desinformação nacionais e estrangeiras envolveram instâncias de alegação do status de media para jogar com uma falsa pretensão de autenticidade para promover a desinformação e polarizar o conteúdo.

– Meio de comunicação online coordenado com a espionagem (“intelligence”) russa para enganar num julgamento em tribunal criminal.

Bonanza Media e MH17 (Novembro de 2020). Apresentando-se como uma plataforma de investigação independente na Holanda, a Bonanza Media é um projecto de media de desinformação com um propósito especial, dedicado a propagar narrativas alternativas sobre as causas do acidente do voo Malaysia Airlines 17 (MH17), descoberto pelo Bellingcat. A ex-jornalista da RT Yana Yerlashova fundou o meio com a ajuda do blogger holandês Max van der Werff, que conseguiu receber credenciais da imprensa holandesa pouco depois da fundação do site em 2019. A investigação revelou que a Bonanza Media, logo após a sua criação, se coordenou com a inteligência militar russa e teve um papel no fornecimento de elementos enganadores no julgamento criminal sobre o acidente do MH17. O meio também lançou uma campanha de crowdfunding para financiar um documentário supostamente independente e rastreou testemunhas alinhadas para reforçar a sua versão da história. Nos últimos meses, o meio de comunicação ampliou o seu conteúdo de conspirações relacionadas com o MH17 para incluir a desinformação Covid-19 (por exemplo, acusando governos e a grande media de reagir exageradamente à ameaça à saúde, opondo-se a medidas de confinamento ou ecoando alegações de que os hospitais estavam vazios).

– Meios de comunicação online posicionam-se como meios de comunicação conceituados e realizam campanhas de desinformação dentro da UE.

FranceLibre24: falsificação e manipulação de conteúdo online (Janeiro de 2020). Em França, uma anterior investigação do EU DisinfoLab revelou como a media de língua francesa France Libre 24 era, na realidade, administrada secretamente por uma polémica rede de media polaca de extrema-direita. Existente até hoje, o FL24.net conta com uma estratégia de “spoofing”, já que o seu nome imita o título de notícias de qualidade France24. O meio de comunicação afirma reproduzir conteúdo de fontes confiáveis. No entanto, os artigos são frequentemente manipulados para incluirem mensagens falsas ou polarizadoras para afectar o cenário político francês em tópicos que dividem o público, como identidade, religião, segurança e migração. Como escreveu o Politico, estes casos chamam a nossa atenção para os desafios espinhosos colocados pelas campanhas de desinformação intra-UE.

– Meio de comunicação online usa personas falsas para recrutar jornalistas freelance.

PeaceData e as eleições americanas de 2020 (Setembro de 2020). A empresa norte-americana de cibersegurança Graphika descobriu que a autodenominada “organização de notícias global” Peace Data era uma operação de informação russa criada pela Internet Research Agency russa (IRA). O FBI encerrou o meio de comunicação, que criou uma “quinta de conteúdos” noticiosos para semear a discórdia antes das eleições presidenciais de 2020 nos Estados Unidos. O site Peace Data nomeava a sua equipa, editor e assistentes editoriais, sendo que todos eram personas falsas com fotos de perfil gerados por inteligência artificial. Os “trolls” russos usaram essas personas falsas para contactar jornalistas freelance e escritores americanos, pagando-lhes para escrever artigos para o site.

– Meios de comunicação usados ​​para operações de influência doméstica para silenciar a oposição.

Operações Pró-Tabboune na Argélia (desde 2019). A media online que se apresenta como um meio de comunicação autêntico foi usada para campanhas de influência doméstica, como numa actividade multiplataforma para promover os interesses do presidente argelino, Abdelmadjid Tebboune, desde a sua candidatura presidencial de 2019 ao referendo constitucional de 2020 e às eleições parlamentares de 2021. A Graphika mostrou que a operação também teve como alvo o movimento de protesto anticorrupção Hirak, procurando silenciar vozes dissidentes. Foram criadas plataformas e páginas, várias das quais também se assumiram como títulos independentes de media ou imitaram organizações de notícias legítimas para disseminar mensagens com motivação política de apoio a Tebboune.

– Meios de comunicação contratam jornalistas freelance reais para promover agendas ocultas.

AlphaPro e propaganda paquistanesa (Maio de 2021). Em meados de 2021, o Facebook removeu uma rede de contas e páginas originadas no Paquistão, empenhadas num comportamento falso coordenado para atingir públicos domésticos e internacionais (falantes de inglês, pachto e árabe) associados à AlphaPro, uma empresa de relações públicas sediada no Paquistão. O Facebook encontrou alguns links entre esta e um outro conjunto de contas já removidas atribuídas a funcionários do departamento de Relações Públicas Inter-Serviços das Forças Armadas do Paquistão. Muitas contas envolviam personas falsas ou fingiam ser títulos de media independentes que defendiam uma agenda política clara anti-Índia e pró-Paquistão. A Graphika escreveu: “As contas nesta campanha também se mostraram como meios de comunicação independentes e criaram conteúdo de vídeo original com actores pagos e jornalistas freelance, demonstrando como os interesses políticos podem negociar com os valores de uma imprensa livre para promover secretamente as suas próprias agendas”.

– Meios de comunicação e o “franchise” das suas actividades malignas para organizações de media e facções militares.

Activos vinculados à Rússia na África (Dezembro de 2020). Em Dezembro de 2020, o Facebook removeu três redes separadas que visavam comunidades em toda a África, contando com 5,7 milhões de seguidores. O Stanford Internet Observatory e a Graphika relataram que os actores de duas dessas redes estvam antes ligados à Internet Research Agency (IRA) e ao financiador russo Yevgeniy Prigozhin. Estas actividades cinzentas de propaganda assumiram a forma de operações secretas com contas de media social falsas, criando organizações de media de fachada, bem como financiando e assumindo a propriedade maioritária em estações de notícias locais em vários países africanos (por exemplo, República Centro-Africana, Madagascar, Líbia, etc. ) que então começaram a transmitir conteúdos pró-russos.

Em conclusão, esta lista de exemplos não é de forma alguma exaustiva. Ela reflecte como os especialistas em desinformação encontram uma dimensão dos media para cada nova operação de informação descoberta.

Fonte: EU DisinfoLab – Direitos reservados.