Os criadores de conteúdo que utilizam as licenças Creative Commons para publicar e divulgar os seus materiais podem ter sido acometidos em 2021 por uma nova dúvida em relação aos seus trabalhos: o que são os tokens não fungíveis (conhecidos pela sigla em inglês NFT, de “Non-Fungible Tokens”)? Eles são compatíveis com as licenças CC? Se eu licenciei uma minha obra sem restrições para uso comercial, evitando licenças NC, um terceiro pode fazer um NFT dela?

Algumas dessas dúvidas já apareceram nos grupos de discussão da comunidade Creative Commons e foram respondidas pela CEO da organização, Catherine Stihler. Foram também objecto de análise específica por Andres Guadamuz, do blogue Technollama, um importante nome internacional no estudo do direito e da tecnologia.

Retomando alguns dos pontos que já foram levantados nesses textos e contribuindo com alguns originais, gostaríamos de responder o que podem ser as dúvidas mais comuns que possam surgir na comunidade luso-brasileira do Creative Commons.

Em primeiro, para além de qualquer tecnicidade, o pano de fundo da cultura livre do Creative Commons não parece sugerir uma relação amistosa com a ideia de um novo tipo de escassez artificial gerado pelos tokens não fungíveis. As licenças CC surgem justamente como uma forma de evitar alguns dos problemas resultantes de outro tipo de escassez artificial: os direitos de exclusividade dos direitos autorais, particularmente no ambiente digital. Enquanto os NFTs têm um propósito visivelmente comercial, para estimular transacções e a comercialização de bens digitais que podem ser copiados e partilhados por um clique, o Creative Commons dedica os seus esforços justamente para ampliar essas possibilidades de partilha em prol de uma cultura pujante e acessível.

Isto não quer dizer que sejam incompatíveis. O tipo mais comum de NFT não impede de forma alguma a partilha de algum bem digital, até por serem coisas completamente distintas. Porém, a ideia por trás de cada um vai sugerir a interpretação a ser dada em casos de dúvida.

O NFT é completamente distinto do bem digital? Ele não é uma forma justamente de tornar esse bem escasso, como se eu transformasse uma imagem no meu computador numa tela de pintura?

Os NFTs podem existir em diferentes formas. De facto, é possível inscrever o ficheiro digital directamente na cadeia de blocos [“blockchain”], e nesse caso você estaria de facto a comprar o bem na transacção, mas custando aproximadamente 184 dólares por kilobyte de informação. Essa despesa vai aumentando exponencialmente, o que faz com que colocar 1MB directo numa das “blockchains” custasse centenas de milhares de dólares, e colocar 300MB (o tamanho da obra de Beeple que ficou famosa) custasse milhões. Os NFTs também podem representar contratos que atribuem a posse, propriedade ou titularidade de um bem digital, servindo eles mesmos como mecanismos de transferências de direito. Isso só é possível evitando potenciais nulidades, se ele for programado de maneira a respeitar as formalidades e limites legais para diferentes tipos de transações, caso estas sejam exigíveis.

O mais comum, contudo, pela sua simplicidade e menor custo, é que os NFTs sejam essencialmente metadados de um ficheiro digital que são gravados (“minted”) na cadeia de blocos, com apoio de contratos inteligentes e consumindo unidades chamadas “gas”. Para que eu crie um token não fungível, basta instalar uma implementação do contrato inteligente no meu computador (geralmente pela norma ERC-721) e utilizá-lo para inscrever um “hash” feito a partir de um ficheiro digital numa “blockchain” à sua escolha, provavelmente a Ethereum.

Os NFTs vendidos são identificados por uma combinação de duas sequências de algarismos alfanuméricos, que correspondem ao número do contrato inteligente e à identificação do token dentro desse contrato. Essas sequências permitem encontrar o NFT na “blockchain” e, dentro do seu código (que são essencialmente os seus metadados), poderemos encontrar uma outra sequência única feita a partir do ficheiro digital. Porém, como as pessoas gostam de ter o ficheiro acessível online, não é diretamente essa sequência que representará o NFT. Na verdade, tanto o ficheiro digital quanto os seus metadados são hospedados num serviço relativamente seguro e estável, e uma nova sequência é feita a partir dos metadados desse “upload”. Essa última sequência é o que é colocado à venda como NFT e que servirá como ponte entre linhas de códigos, que pouco sentido fazem para uma pessoa comum, e a imagem da obra que ela supostamente estaria comprando ao adquirir o “token”.

As sequências mencionadas são resultantes de funções “hash”, um processo no qual certas informações são transformadas num número fixo de dígitos alfanuméricos único para elas, com hipóteses extremamente baixas de surgirem dois iguais. O algoritmo mais comum é o SHA-256, que produz um “hash” de 256-bits. Qualquer mudança mínima de informação no dado original faz com que o resultado da função “hash” seja um valor diferente. Se eu mudar um “hash” que faz parte de um ficheiro que será novamente passado por uma nova função “hash”, as sequências subsequentes também serão alteradas em cadeia.

A não-fungibilidade do nome do token refere-se na verdade ao “token” em si – algo como um certificado ou recibo que faz referência ao bem – e não ao próprio bem digital. Em termos técnicos, o “dono” não será exactamente um proprietário, mas terá controlo sobre o “token” (o “certificado” do ficheiro), não sobre o ficheiro digital. A comparação que se tem feito do NFT a um tipo de propriedade similar ao dos imóveis, nos quais isso é observado por meio de um documento (o registo), deve ser vista com estranheza, porque no caso do bem imóvel é justamente a existência de uma lei específica que confere o direito de propriedade ao ter o seu nome registado – algo que não se repete para os “tokens”.

Everydays: The First 5000 Days

Os direitos autorais não se aplicariam aos metadados transformados numa sequência de algarismos por lhes faltar uma originalidade mínima. As licenças Creative Commons, desenvolvidas em cima das regras do direito de autor, acabam consequentemente por ter pouca relação directa com os NFTs.

Porém, se alguém fizer referência (incluindo através de um link) a uma obra de terceiro licenciada por CC afirmando ser sua, os direitos morais são uma ferramenta de defesa efectiva. A excepção seriam obras licenciadas sob CC0 nalgumas jurisdições que permitam abdicar dos direitos morais, ou a colocação de uma criação voluntariamente em domínio público. O direito de atribuição, resguardado mesmo nas licenças cultura livre, veda a falsa atribuição de autoria sobre uma obra, ainda que a obra não tenha sido copiada ou comunicada ao público.

Não parecem existir limites para que alguém crie um NFT a partir de uma obra de terceiro licenciada sob CC que permita o uso comercial. Mesmo no caso de uma licença CC-NC, não existiria um limite do direito autoral por terceiro se ele tomasse o cuidado de não fornecer um link para uma cópia da imagem. Afinal, estaria apenas a negociar os metadados dela. Outros tipos de direitos poderiam ser trazidos para a discussão, como o crime de fraude, mas isso ultrapassa as fronteiras jusautorais, e vai um pouco além do que pretendemos abordar neste texto.

De qualquer forma, não ser ilegal não quer dizer que não seja imoral, nem que não iria contra os princípios por trás da cultura livre e dos Creative Commons. O exemplo acima indica justamente como há muito para ser trabalhado pelos decisores legislativos e políticas públicas em relação não só aos NFTs, mas às “blockchains” de forma geral. Noções que não se enquadram no direito autoral vigente podem exigir adaptações da lei ou das maneiras de interpretá-la, como já ocorreu antes com a popularização da Internet e dos bens digitais no desenvolvimento da sociedade informacional.

Uma tecnologia primariamente voltada para facilitar a comercialização e investimento em obras de arte digital acaba tendo efeitos práticos e jurídicos que ultrapassam a sua finalidade inicial. A sua lógica de funcionamento pode ser pouco compatível com outras lógicas do ecossistema de criação cultural, razão pela qual precisamos de nos manter atentos para não deixar que apenas interesses económicos guiem as alterações das políticas públicas.

* Texto de Pedro Lana e Leonardo Foletto, publicado na Creative Commons Brasil (CC). Imagens: CC e Everydays: The First 5000 Days, de Beeple, a partir de imagens licenciadas em CC.

[act.: An artist died. Then thieves made NFTs of her work: NFTs are unregulated, and in the case of deceased artist Qinni, scammers have been quick to take advantage. Can they be stopped?

This bird has become the world’s first ‘digital species’ for conservation: The bird is being offered as a limited-edition non-fungible token (NFT) – a one-of-a-kind piece of digital content linked to an image or video – meaning that only 59 ‘digital twins’ of the endangered species will be released for purchase.

NFTs 2.0: What’s Next? The downsides and areas of possibilities for the future of the virtual assets.

Why cryptocurrency is a giant fraud]