Uma testemunha-chave no caso do Departamento de Justiça (DoJ) contra Julian Assange admitiu que todo o seu depoimento é falso, uma revelação que pode ser a sentença de morte para as tentativas dos EUA de processar o fundador do Wikileaks.
Sigurdur Ingi Thordarson, também conhecido como “Siggi, o Hacker”, fez a confissão ao jornal islandês Stundin no final de Junho. O artigo detalha como Thordarson, um criminoso condenado, pedófilo e sociopata diagnosticado, usou a sua posição para roubar dinheiro ao Wikileaks e recebeu imunidade da acusação do FBI em troca de dinheiro.
Uma notícia tão suculenta deveria ter feito manchetes em todo o mundo. Mas, em vez disso, desde 2 de Julho não houve literalmente qualquer cobertura nos media corporativos; nenhuma palavra no New York Times, Washington Post, CNN, NBC News, Fox News ou NPR. Uma busca online por “Assange” ou “Thordarson” não devolverá nenhum artigo relevante de fontes estabelecidas, seja nos EUA ou em qualquer outro lugar da Anglosfera, mesmo em plataformas com foco em tecnologia como a Verge, Wired ou Gizmodo.
Amplamente tratado por sites alternativos
A notícia não é nenhum tipo de conhecimento esotérico acessível apenas por aqueles que observam atentamente os assuntos islandeses. A história tornou-se uma tendência mundial no Twitter nesse fim de semana, com uma série de contas ou de figuras proeminentes como o próprio Wikileaks, Edward Snowden e Glenn Greenwald a tuitar sobre isto.
Além disso, a confissão de Thordarson foi bem coberta por sites de notícias alternativos com uma pequena fracção dos recursos que a media tradicional possui (por exemplo, Consortium News, World Socialist Web Site, Canary). A notícia levou o programa Democracy Now! a apresentar uma entrevista detalhada com a assessora jurídica de Assange, Jennifer Robinson. Esta distinção mais uma vez destaca o abismo entre a media corporativa e alternativa, sugerindo que certos assuntos são simplesmente zonas proibidas para a primeira.
Não é que a imprensa corporativa esteja completamente desinteressada de Assange. Vários meios de comunicação cobriram a notícia de que ele e a sua parceira Stella Morris estão a planear casar-se (por exemplo, SBS, Daily Mail, Evening Standard, Times de Londres). No entanto, nenhum desses artigos mencionou as notícias muito mais importantes sobre Thordarson e como isso prejudica toda a acusação de Assange.
Testemunha duvidosa
Thordarson foi uma testemunha extremamente duvidosa desde o início. Em 2013, foi preso sob a acusação de crimes sexuais envolvendo um adolescente menor. No ano seguinte, também se confessou culpado de abuso sexual ou comportamento sexual impróprio em relação a outras nove crianças. Um psiquiatra nomeado pelo tribunal diagnosticou-o como um sociopata incapaz de sentir remorso.
Em 2014, ele foi condenado a mais dois anos de prisão por uma série de crimes financeiros, incluindo o desvio de 50 mil dólares do Wikileaks. Ele também foi acusado de tentar chantagear outras empresas locais, embora as acusações tenham sido retiradas posteriormente. Tal como Assange, Siggi, o Hacker, passou grande parte da última década atrás das grades.
Ao lado dos EUA
Numa nação com um sistema de media saudável, a imprensa saudaria essas revelações como um golpe final nas tentativas de um governo autoritário de usar o seu músculo para silenciar a liberdade de expressão e o jornalismo investigativo em todo o mundo, enquanto também se perguntava como uma testemunha tão pouco fiável poderia ter-se tornado uma fonte importante para o FBI e o DoJ.

Mas a imprensa corporativa global há muito tempo que decidiu aliar-se ao estado de segurança nacional dos EUA, aplaudindo o governo Trump por sequestrar Assange da embaixada do Equador em Londres (FAIR). O conselho editorial do Washington Post aplaudiu a prisão, chamando-a de “demasiado atrasada”. O Wall Street Journal teve uma opinião semelhante e o seu conselho [“board”] expressou alívio porque finalmente haveria alguma “responsabilidade para Assange”. A CNN tentou fazer uma distinção entre ela mesma e o trabalho do Wikileaks, insistindo na sua manchete que Assange “não é jornalista”.
Como a FAIR observou no ano passado, a media corporativa tem trabalhado muito para olhar para o outro lado durante o julgamento de Assange, após tentar “pintá-lo” como um activo russo (FAIR). Isso parece ter funcionado. O ex-candidato democrata à presidência, Howard Dean, tuitou no final de Junho que “Assange causou danos reais junto com outros ao colaborar com os russos para eleger Trump. Ele não deve ser perdoado em nenhuma circunstância”. Dean está aparentemente com a impressão de que é disso que trata o julgamento, não da publicação dos Iraq War Logs.
A completa uniformidade com que a media corporativa tratou estas últimas notícias bombásticas levanta ainda mais preocupações sobre como estão fundamentalmente interligados e alinhados com os interesses do governo dos Estados Unidos. Como observou o jornalista de investigação Matt Kennard (Twitter): “Uma das coisas incríveis sobre a malha legal de Assange é como ela é descarada. Eles sabem que podem se safar porque a grande media se recusa a denunciá-la”. Infelizmente, ele parece estar certo.
* Texto original publicado na FAIR (CC). Foto: Stundin
Nota: em Portugal, apenas Inês Moreira Santos abordou o assunto na RTP, em “WikiLeaks. Testemunha-chave contra Assange admite que mentiu e inventou acusações” mas outros jornais (JN ou Observador, por exemplo) noticiaram pouco antes aspectos pessoais da vida de Assange.
A ler, ainda sobre a escassez de notícias sobre o assunto: “A Remarkable Silence: Media Blackout After Key Witness Against Assange Admits Lying” e “The Horrifying Rise Of Total Mass Media Blackouts On Inconvenient News Stories“.