Em França, enquanto a luta continua para proibir a vigilância nas ruas, o sector privado está a desenvolver discretamente os seus dispositivos até mesmo em supermercados. Para detectar os roubos, Carrefour, Monoprix, Super U e até Franprix estão a experimentar softwares de análise biométrica para monitorar cada movimento nas suas superfícies.

A crise sanitária já tinha libertado as veleidades da vigilância biométrica das empresas privadas: câmaras térmicas na entrada das empresas, detecção de distância física nos escritórios, monitorização do movimento ocular nos exames universitários à distância…

Várias empresas francesas estão agora a oferecer a detecção automática de furtos nas lojas “em tempo real” usando software de análise biométrica ligado directamente às câmaras já presentes nas lojas.

Start-ups francesas sonham com a vigilância generalizada
Embora a ideia de detectar roubos automaticamente em lojas já tenha sido testada no Japão, várias empresas francesas não hesitaram em desenvolver o seu próprio software:
– a Anaveo, uma empresa de 320 pessoas com uma facturação de 70 milhões de euros, trabalha na área de videovigilância para a grande distribuição. O seu software “SuspectTracker” promete capturar fluxos de imagens de câmaras para analisar “comportamentos suspeitos”, por exemplo “gestos em direção ao carrinho, mochila, bolsos da calça ou do casaco”. Os seus vídeos de apresentação mencionam de passagem que a detecção de roubo é inserida numa base de dados, permitindo melhorias adicionais no algoritmo;

– a Oxania, uma start-up fundada em 2019, produziu o software “Retail Solutions” capaz de “reconhecer os gestos associados ao roubo em tempo real, detectar comportamentos, situações perigosas, o percurso do cliente e muito mais”. O vídeo de apresentação assume calmamente uma análise biométrica do comportamento das pessoas na loja (calor corporal, gestos, corpos, etc.);

– e, acima de tudo, a Veesion, uma start-up parisiense que vende um produto de “reconhecimento de gestos” com “uma parte que identifica o humano, outra que localiza os membros no corpo humano, outra que identifica os objectos de interesse […]” para, em seguida, enviar um alerta para o telefone das equipas. Como bónus, a Veesion oferece-se para analisar o “seu histórico de roubos e [fornecer] recomendações personalizadas”.

Resumindo: um conjunto de dispositivos de vigilância e monitorização biométrica implantados em total liberdade e sem qualquer informação às pessoas visadas.

Grande distribuição acelera para a vigilância biométrica
Talvez o mais impressionante é olhar para as listas de clientes das empresas mencionadas e perceber que a sua implantação já está bem avançada.

A Veesion anuncia que está em mais de 120 lojas em França e o mapa exibido sugere muito mais. No guia “Histórias de sucesso” do seu site, há alguns exemplos destacados, entre um conjunto muito maior e difícil de medir: Monoprix (produto instalado em Julho de 2019 em 22 câmaras de uma loja em Paris), Franprix (três lojas em Paris com 48 câmaras em 2019), Super U Express (uma loja em Paris com 13 câmaras em 2019), Bio c ‘Bon (4 locais em Paris).

A Anaveo também não descansa, embora seja difícil adivinhar o número exacto dos seus clientes. Sabe-se, pelo menos, que a sua implantação já foi iniciada, como atesta o depoimento de um Carrefour Market em Bourges, que anuncia ter adquirido 11 licenças de software para as suas 32 câmaras, e um Intermarché em Artenay.

Proteger a rentabilidade da grande distribuição com a tecnopolícia
Não há desconforto entre os programadores de software ou na grande distribuição. Pelo contrário, como a empresa Anaveo afirma claramente, o objectivo de implantar essa vigilância biométrica é lutar contra o “encolhimento invisível” (entenda-se furto), é “ajudar o sector da distribuição a proteger o seu volume de negócios”.

Pior ainda, para o criador da Veesion, a angústia social criada pela recente pandemia vai provocar problemas sociais, obrigando as empresas a “investir mais em soluções que lhes permitam proteger-se”. A sua empresa terá então que estar, segundo ele, “à altura das novas exigências do retalho físico”, ou seja, desenvolver as ferramentas da tecnopolícia para proteger a grande distribuição das populações pobres empurradas para o roubo pela crise social. Tanta energia e recursos que poderiam ter vindo ajudar os pobres mas que se voltarão contra eles.

Analyse comportementale avec SuspectTracker

Esta tecnopolícia privada não se apodera apenas das ferramentas dos Estados policiais – também adopta a sua ideologia e vocabulário. Na sua comunicação comercial, a Veesion apresenta um medo sinistro: “não podemos confiar nos clientes, mesmo os fiéis”. É exactamente nessa ideia de “todos suspeitos” que se baseia a vigilância policial em massa.

Mais uma vez, a acção da CNIL [equivalente francesa da Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD)] não parece proteger desses ataques. Em Junho de 2020, esta autoridade alertou que grande parte dos dispositivos de videovigilância automatizada não respeitava o enquadramento legal. A comunicação não parece ter posto fim aos abusos da indústria de segurança ou da grande distribuição, pelo contrário. Apesar da gravidade dos seus dispositivos (detecção e rastreamento biométrico), essas empresas ainda se vangloriam dos seus sistemas de vigilância sem que qualquer sanção pública as tenha vindo impedir (acabamos de abordar a CNIL, ao mesmo tempo deste artigo, com um pedido [de acesso a documentos administrativos] sobre este assunto específico para descobrir se uma investigação, ou equivalente, está a decorrer).

O combate contra a vigilância biométrica não deve, obviamente, limitar-se às autoridades públicas. Como a vigilância na Internet, é um processo de duas cabeças, com as empresas privadas a trabalharem lado a lado com os funcionários públicos, desenvolvendo juntas e paralelamente um controlo social cada vez maior: as ruas, os escritórios, os supermercados – para não deixar qualquer espaço para o anonimato.

[Em Portugal, a Sensei – reconhecida recentemente pelo projecto de 230 videocâmaras para gestão de stock e pagamento por QR Code de compras numa loja C-Labs – anuncia que a sua proposta de “análise de dados irá ajudar a entender o cliente, as suas preferências e o seu comportamento na loja”.

Já a CNPD não tem qualquer informação ou pedido de autorização sobre o projecto no seu site. No entanto, para pedidos anteriores, esta entidade impunha no caso de videovigilância dentro dos estabelecimentos comerciais que “não podem as câmaras incidir regularmente sobre os trabalhadores durante a actividade laboral, nem as imagens podem ser utilizadas para o controlo da actividade dos trabalhadores, seja para aferir a produtividade seja para efeitos de responsabilização disciplinar (cf. artigos 20º e 21º do Código do Trabalho)”.]

 

* Texto principal de La Quadrature du Net (CC BY-SA 4.0).