As recentes acusações de censura à aprovação da Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital recordaram leis de 1933, quando Salazar impôs a censura prévia.
Na realidade, ele parece ter ido rebuscá-la à primeira lei da imprensa, de 1821, como explica um texto no site do Parlamento. Esta então nova lei sucedia ao regime de censura prévia de três entidades (“a Inquisição, o Ordinário (os bispos) e o Desembargo do Paço, uma espécie de supremo tribunal da época”) que deviam zelar para “proteger a Monarquia absoluta, a doutrina católica e a ordem social”.
O projecto de lei de imprensa surgia no seguimento da Revolução Liberal de 1820. Foi apresentado a 5 de Fevereiro de 1821 pelo deputado Francisco Soares Franco, “inspirado, com consideráveis adaptações, na legislação espanhola” e pretendia criar uma “opinião pública”, num “espaço de liberdade de expressão privilegiado para o debate de ideias e para a comunicação das diferentes opiniões sobre as políticas desenvolvidas pelos governantes, isto é, como um dos meios fundamentais, não só de formação da cidadania, mas do seu próprio exercício, a par, por exemplo, do voto. Assim, nos cerca de três anos que durou o primeiro liberalismo português, foram lançados em Portugal Continental 112 jornais, 71 dos quais jornais políticos”.
Para “precaver possíveis abusos da liberdade de imprensa”, Soares Franco definia “seis tipos de publicações que constituíam delito: ‘doutrinas tendentes a destruir a religião católica apostólica romana’; ‘máximas ou doutrinas contrárias ao Governo constitucional, ou que excitem os povos à rebelião’; provocações às autoridades, ou incitações à desobediência a estas ou à lei; incitações a ‘vassalos de outras nações a desobedecerem aos seus Governos ou monarcas’; ‘escritos obscuros ou contrários aos bons costumes’ e injúrias a pessoas ou ‘corporações’ que ‘manchem a sua honra e reputação'”.
Apesar do projecto rejeitar a censura prévia absolutista, ela estava em vigor, por exemplo, no “Governo interino de Lisboa [que] estabelecera, a 21 de Setembro de 1820, uma comissão de censura prévia” e por incorporar um “direito excepcional aos bispos de poderem censurar – deduz-se que não previamente –, os ‘escritos publicados sobre dogma e moral’, beneficiando, para isso, do auxílio do Governo”.
A censura prévia foi o “assunto central da discussão”. Para Soares Franco, ela “produzia ‘a decadência do Estado e a ignorância e barbaridade dos povos’ em todos os países onde vigorava”, defendendo a censura posterior. Esta tese triunfou na versão final da lei, promulgada a 12 de Julho de 1821, mas listando “quatro tipos de abuso – contra a religião católica, contra o Estado, contra os ‘bons costumes’ e ‘contra os particulares'”. A lei foi anulada a 6 de Março de 1824 “e reposta a legislação muito restritiva que controlara a imprensa nas décadas anteriores à Revolução Liberal”.
De Salazar a Boris Johnson
Na lei de 1933, a censura prévia vingou para se focar nas publicações periódicas “sempre que em qualquer delas se versem assuntos de carácter político ou social”. Esta censura “terá somente por fim impedir a perversão da opinião pública na sua função de força social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de todos os factores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum, e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade”.
Já em democracia, no decreto-lei 406/74, de 29 de Agosto, – popularizado nos últimos dias por ser a base que “garante e regulamenta o direito de reunião” ou manifestação -, o Governo Provisório no pós-25 de Abril estabeleceu esse direito mas “para fins não contrários à lei, à moral, aos direitos das pessoas singulares ou colectivas e à ordem e à tranquilidade públicas”. Para mais, e “sem prejuízo do direito à crítica, serão interditas as reuniões que pelo seu objecto ofendam a honra e a consideração devidas aos órgãos de soberania e às Forças Armadas”.
[Na mais recente versão, a lei 2/99, “a liberdade de imprensa tem como únicos limites os que decorrem da Constituição e da lei, de forma a salvaguardar o rigor e a objectividade da informação, a garantir os direitos ao bom nome, à reserva da intimidade da vida privada, à imagem e à palavra dos cidadãos e a defender o interesse público e a ordem democrática”.]
Outras democracias também incorporaram internamente o que se entendeu denominar de censura, nem sempre pelas melhores razões e várias vezes albergada na luta contra a Covid-19.
O caso do Reino Unido é eloquente nesta luta contra a desinformação, por ter algumas semelhanças com a Carta portuguesa.
Proposto em Maio passado, o Online Safety Bill foi considerado uma “receita para a censura” apesar das salvaguardas impostas à liberdade de expressão e de imprensa. Os ministros procuraram que “as necessárias protecções online não levem a uma desnecessária censura” mas a lei “inaugura uma nova era de responsabilidade e protecção para o debate democrático” e a entidade supervisora Ofcom poderá multar as empresas faltosas e bloquear a sua presença online.
A proposta pretende “fortalecer os direitos das pessoas de se expressarem livremente online, protegendo o jornalismo e o debate político democrático”. Plataformas, sites e aplicações de conteúdos “devem remover e limitar a propagação de conteúdo ilegal e prejudicial, como abuso sexual infantil, material terrorista e conteúdo de [incitamento ao] suicídio”.
Obama e Trump juntos
O problema dos conteúdos danosos nos media sociais não é um exclusivo da Europa e os EUA têm tentado alertar para as suas consequências, embora a forte predominância da Primeira Emenda à Constituição – de defesa da liberdade de expressão -, tenha obviado a medidas directas de controlo do discurso.
Em Novembro passado, o ex-presidente dos EUA, Barack Obama, salientou como as empresas tecnológicas “estão a fazer escolhas editoriais, quer as tenham enterrado em algoritmos ou não. A Primeira Emenda não exige que as empresas privadas forneçam uma plataforma para qualquer visão existente”.
Mas, referiu Obama, “se não tivermos a capacidade de distinguir o que é verdadeiro do que é falso, então, por definição, o mercado de ideias não funciona. E, por definição, a nossa democracia não funciona. Estamos a entrar numa crise epistemológica” que “é a maior ameaça à nossa democracia”.
De Obama a Trump, a preocupação foi semelhante. Numa criticada ordem executiva de Junho de 2020, o então presidente escreveu: “A liberdade de expressão é o alicerce da democracia americana” e “a liberdade de expressar e debater ideias é a base de todos os nossos direitos como um povo livre.
Num país que há muito acalenta a liberdade de expressão, não podemos permitir que um número limitado de plataformas online escolha a dedo o discurso que os americanos podem aceder e transmitir na Internet. Essa prática é fundamentalmente não-americana e antidemocrática. Quando grandes e poderosas empresas de media social censuram opiniões das quais discordam, elas exercem um poder perigoso. Elas deixam de funcionar como ‘bulletin boards’ passivos e devem ser vistos e tratados como criadores de conteúdo”.
Mais tarde, e após demasiados abusos, Trump foi impedido de se expressar nessas mesmas redes sociais.
Esta tensão entre medidas restritivas e ameaças concretas à democracia, nomeadamente com a desinformação, tem feito emergir novas questões: pode a desinformação online minar a democracia? É possível a democracia e a liberdade na era digital? Como vai a tecnologia afectar as democracias? E quem deve ser o “grande árbitro” da liberdade de expressão?
Devem-se censurar os “transmissores neutros”?
Em “Social Media and Democracy“, escreve-se como numa pequena experiência de moderação de conteúdos, “o tratamento censório foi o mais eficaz na redução de comentários hostis” e no uso de discurso de ódio. Mas, apesar de “algum optimismo” nesta abordagem, sabe-se ainda “muito pouco sobre os potenciais danos colaterais dessas intervenções”. O afastamento de Trump das redes sociais revelou tensões contraditórias.
Segundo a referida obra, mesmo “a política recente dos EUA foi criticada por adoptar uma abordagem excessivamente censória, ampla e tecnologicamente pouco sofisticada para combater e regulamentar o uso político de bots durante as eleições e outros eventos”.
Neste ambiente, tende-se a não penalizar demasiado as plataformas de media sociais, por se temer que elas “responderiam não procurando moderar o conteúdo, por medo de serem responsabilizadas pelas suas decisões editoriais”. Elas preferem assumir-se como “transmissores neutros do conteúdo de outras pessoas, mas é claro que têm sido capazes de promover ou rebaixar várias formas de conteúdo segundo o seu próprio critério”.
A referida Primeira Emenda “não protege o direito dos indivíduos a usar plataformas privadas” mas “o direito dessas plataformas de transportar qualquer conteúdo que considerem adequado”. E apenas “o governo pode ser acusado de censura nestes termos”.
Como as plataformas online, também os media tradicionais privados ou públicos “tomam decisões sobre conteúdo apropriado”. Também por isso, “o problema da auto-regulação de empresas como Facebook e Google não é um legal; a questão que levantam é de legitimidade básica, decorrente da sua escala”.
Com os media, “os consumidores têm a opção de mudar [de jornal] para outro diferente, se não gostarem da sua cobertura”. Mas “o mesmo não acontece no mundo das plataformas online. Devido às economias de escala e escopo, as grandes plataformas da Internet (predominantemente Facebook e Google) cresceram de tal forma que constituem efectivamente uma praça pública, não apenas nos EUA, mas em dezenas de outros países ao redor do mundo”.
E, também por isso, se assiste a inúmeras tentativas em diferentes continentes e países de delimitar até onde pode ir uma “censura benéfica”, se é que ela existe. Mas o que raramente se vê são propostas alternativas e concretas a este modelo.
Censurar para esconder a incompetência
Generalizar a censura como algo semelhante em países democratas e totalitários é uma falácia, porquanto os primeiros têm garantias constitucionais e os outros não. Mas cada vez mais países alegadamente democráticos estão tentados a impor a remoção de conteúdos ou até a bloquear acessos, uma reacção às “consequências naturais da inconsistência e incompetência das nossas instituições públicas“.
Outros contribuem para aumentar os conteúdos falsos, como sucede com as “condições restritas” na Alemanha para as autoridades disseminarem imagens falsas de crianças no combate ao abuso sexual infantil nos meios online.
O caso da Índia, no Punjab, é também ilustrativo quando o governo anuncia querer bloquear os cartões SIM dos telemóveis a quem se recusar ser vacinado contra a Covid. Isto pode ser visto tanto como uma pressão para ser vacinado num país com uma enorme taxa de contaminados ou para impedir o acesso pela Internet a narrativas não-oficiais.
“Nalguns casos, essas remoções são forçadas pelo governo. Noutros, as políticas da plataforma colocam os grupos minoritários em desvantagem, dificultando a visualização dos seus conteúdos. Mas seja qual for a causa, os gritos de censura estão a elevar-se – e como as plataformas respondem terá enormes implicações políticas em todo o mundo”, alertava Casey Newton em “How censorship became the new crisis for social networks“.
Durante o “magaphone” dos anos Trump, “tornou-se um artigo de fé entre os conservadores que estavam a ser censurados pela Big Tech, e que essa censura era por razões ideológicas. (O facto de os conservadores beneficiarem enormemente com as plataformas de tecnologia, e muitas vezes dominarem as listas dos ‘posts’ mais populares no Facebook, nunca lhes pareceu importar.)
Eventualmente, os conservadores passaram a rotular qualquer resultado indesejável nas redes sociais como censura. Não apenas os seus conteúdos a serem removidos – mas também os seus nomes não aparecerem numa posição cimeira o suficiente nos resultados das pesquisas, ou de os seus tweets não receberem ‘likes’ suficientes ou perderem seguidores durante a limpeza de contas QAnon”.
O mesmo sucede em Portugal, quando o Facebook ou o Twitter bloqueia um partido de extrema-direita e este se queixa de parecer ser a única “vítima de censura“, numa estratégia de vitimização que oblitera todos os anteriores que já foram bloqueados por essas redes.
Os sinais concretos dessas mudanças para um caminho mais positivo foram sentidos quando o Twitter baniu Trump e na semana seguinte se registou uma queda de 73% nos conteúdos de informação enganadora. Apesar disso, o que parece ser mal percepcionado é que não é a audiência do Twitter quem promove o sucesso de um utilizador como Trump – muito baseado em mensagens de desinformação – mas antes a replicação dos seus tweets pelos media tradicionais. Segundo o Pew Research Center, esta “plataforma de nicho” é usada por 20% dos norte-americanos adultos e o afastamento de Trump não teve grande impacto no uso diário do Twitter.
O fracasso da proto-rede social que ele foi depois criar demonstra isso mesmo. No Twitter, “um utilizador – não importa quem seja – desaparecer não faz claramente uma grande diferença” e pode até ser “uma vantagem para os anunciantes que foram afastados pela toxicidade dos últimos anos”, explicou Darren Lachtman, ex-director de estratégia da marca no Twitter.
Plataformas opacas
Vivendo da publicidade, percebe-se que as redes sociais tendam a exagerar (também por omissão) sobre a sua importância e no número de utilizadores ou de celebridades.
Isso ficou igualmente visível noutra direcção, quando por pressão pública e publicitária elas se comprometeram a “aumentar a exposição de notícias de qualidade e a eliminar a desinformação prejudicial. Alegaram estar a investir na moderação de conteúdos e validação de factos” mas “o resultado de todas essas mudanças tem sido difícil de examinar, uma vez que os dados são escassos e incompletos”, notou Gordon Crovitz, co-fundador do NewsGuard.
“No Google, YouTube, Facebook e Twitter, temos instituições que sabemos que atribuem classificações de qualidade às fontes de notícias de maneiras diferentes”, referiu. “Mas se você é um meio de comunicação social e quer saber como é avaliado, pode perguntar a eles como esses sistemas são desenvolvidos e eles não lhe vão dizer”. No entanto, é essa classificação de meios de qualidade que leva os utilizadores a considerarem uma marca noticiosa mais fiável e a escolher esses conteúdos.
Tudo isto gera pedidos de “acção urgente” no combate às campanhas de desinformação, sem se beliscarem os direitos fundamentais. Mas o que fazer quando se está perante desinformação sanitária ou climática?
No Ohio, foi apresentada uma queixa judicial para clarificar o estatuto da Google, visando regulá-la como um serviço público e assim poder processá-la por actividades discriminatórias e anti-concorrência. Aliás, a juntar às queixas anteriores, surge agora a dúvida sobre a forma como o serviço Gmail gere certas newsletters.
Tenta-se assim controlar a nova realidade com aproximações que funcionaram no passado, reconhecendo algo que Trump dinamizou e provou a 6 de Janeiro passado: “a violência online leva à violência no mundo real” e, em resultado disso, deve-se “regular a media social“.
É preciso ter cautelas perante os efeitos ainda mal compreendidos das redes sociais. Elas podem ser benéficas na detecção precoce de sinais epidemiológicos, meritórias a substituir a comunicação social tradicional ou até a “disciplinar a corrupção, mesmo num país com uma limitada competição política e a media tradicional fortemente censurada”, como sucedeu na Rússia com Alexey Navalny.
Em sentido contrário, corrigir utilizadores que colocaram desinformação política faz aumentar a partilha desse tipo de conteúdo de baixa qualidade. Porquê? Não se sabe mas uma resposta óbvia é porque são humanos, com egos e princípios e fragilidades idênticas nos mundos real e virtual.
Em resumo, como declarava o The Guardian em Janeiro passado relativamente à desinformação na pandemia, “temos o direito de falar livremente. Também temos direito à vida. Quando a desinformação maliciosa – alegações que são conhecidas como falsas e perigosas – se pode espalhar sem restrições, esses dois valores colidem. Um deles deve ceder, e aquele que escolhemos sacrificar é a vida humana. Tratamos a liberdade de expressão como algo sagrado, mas a vida como negociável. Quando os governos falham em banir mentiras que colocam em risco a vida das pessoas, acredito que fazem a escolha errada”.
* Imagem: EFF