I. Carta aprovada pela esquerda mas divulgada pela direita “define Portugal como uma República Digital Democrática”, diz José Magalhães

II. A “bola de neve” da censura

III. Carta é uma “lei com dentes” ao fixar deveres do Estado e dar aos cidadãos direitos de acção junto das instituições

IV. O que é a desinformação? E pode ser eliminada?


A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital (CPDHED) foi criticada duramente e acusada de promover a censura. O contraditório esteve quase sempre a cargo de um dos promotores da iniciativa legislativa, o socialista José Magalhães, enquanto os partidos que se abstiveram ou votaram a favor da lei mal se pronunciaram até o seu silêncio se tornar insuportável.

O ridículo – que, de alguma forma, legitima a pacífica aprovação da lei – foi atingido no passado sábado 5 de Junho quando o deputado Sérgio Sousa Pinto (PS) deixou subentendido na TVI que aprovara a lei mas não a tinha sequer lido.

As entidades que se pronunciaram no âmbito do diploma mantiveram-se também sossegadas perante as críticas a um documento com que a maioria concordou ou tentou emendar para naturalmente favorecer os seus interesses, vários dos quais foram integrados na versão final.

Mas esta CPDHED vale realmente a pena ser lida e adaptada à realidade nacional? Ela defende os direitos humanos na actual era ou é uma porta para a censura, deste governo ou porventura de um outro posterior?

O Conselho Superior do Ministério Público sintetizou em poucas palavras o único artigo que esta Carta devia incorporar, tendo em conta a agregação de tantos documentos legislativos anteriores: “são aplicáveis no ciberespaço as normas que na ordem jurídica portuguesa consagrem e tutelem direitos, liberdades e garantias”.

O parecer da Comissão Nacional de Protecção de Dados vai no mesmo sentido, notando como a proposta “parece esquecer-se que muitos dos direitos, aqui consagrados como digitais, já estão reconhecidos, e com um âmbito bem delimitado, em instrumentos jurídicos vinculativos para o Estado português”.

José Magalhães discorda desta análise simplista, como explica em entrevista.

Análise de anteprojectos não viu censura, só direita a detectou
A Associação ISOC Portugal considerou a “proposta globalmente como positiva, concordando, em geral, com o articulado proposto”. A DECO, sobre a protecção contra a desinformação, mostrou-se “totalmente de acordo com este preceito”, enquanto a Associação para Promoção e Desenvolvimento da Sociedade de Informação defendeu “ser fundamental um projecto desta natureza, que visa elencar um conjunto de princípios que consagram e tutelam os direitos, liberdades e garantias no ambiente digital”, salientando que “importa ficar claro de que a censura não deve ser permitida”.

As entidades de gestão de direitos de autor (AudioGest, GEDIPE e FEVIP, SPA) propuseram em conjunto que a proposta devia ser rejeitada pelo Parlamento por ser omissa na protecção dos conteúdos no ambiente digital, uma posição também assumida pela Associação Portuguesa de Editores e Livreiros.

Até a análise do Conselho Superior da Magistratura concluiu que os projectos do PAN e do PS “se mostram conformes à Constituição da República Portuguesa”.

Em suma, quase ninguém nos 15 contributos e pareceres reparou que a proposta legislativa poderia servir para uma alegada censura e essa acusação só emergiu após a promulgação (também sem objecções) pelo Presidente da República, a 8 de Maio passado.

Informação e narrativa na desinformação
A génese da Carta iniciou-se em Outubro de 2020, quando ocorreu uma primeira votação na generalidade no Parlamento dos projectos sobre direitos digitais do PS e do PAN, com os votos favoráveis destes partidos e da deputada não inscrita Joacine Katar Moreira, contra da Iniciativa Liberal e do Chega e todos os outros se abstiveram.

As iniciativas baixaram à Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais e, a 8 de Abril, a proposta de lei conjunta foi aprovada com os votos favoráveis do PS, PSD, BE, CDS, PAN, das deputadas Joacine Katar Moreira e Cristina Rodrigues e a abstenção do PCP, PEV, Chega e IL. Foi promulgada por Marcelo Rebelo de Sousa, publicada em Diário da República a 17 de Maio para entrar em vigor daqui a dois meses e tendo um período de 180 dias para ser regulamentada.

O documento institui o direito de livre acesso à Internet por todos independentemente, entre outras, das convicções políticas ou ideológicas, assegurando-se as liberdades de imprensa, expressão e criação em ambiente digital “sem qualquer tipo ou forma de censura”, excepto nas “condutas ilícitas”.

Ao considerar um “direito à protecção contra a desinformação”, especifica-se o cumprimento nacional de medidas semelhantes europeias para proteger a sociedade contra aqueles que “produzam, reproduzam ou difundam narrativa considerada desinformação”. Esta é definida como “toda a narrativa comprovadamente falsa ou enganadora criada, apresentada e divulgada para obter vantagens económicas ou para enganar deliberadamente o público, e que seja susceptível de causar um prejuízo público, nomeadamente ameaça aos processos políticos democráticos, aos processos de elaboração de políticas públicas e a bens públicos”.

Esta formulação, como é perceptível, parece encaixar-se na luta contra a desinformação mas, quando se muda o foco para ter uma visão mais abrangente, é natural o temor de uma lei da censura. Mas, logo de seguida e algo que foi omitido do debate em público, regressa-se a uma definição mais factual como sendo “informação comprovadamente falsa ou enganadora a utilização de textos ou vídeos manipulados ou fabricados, bem como as práticas para inundar as caixas de correio electrónico [spam] e o uso de redes de seguidores fictícios”.

ERC: uma sensação de “déjá vu”
Com a exclusão das sátiras ou das paródias, ficou a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) – contra sua vontade, expressa no parecer prévio – de resolver as “queixas contra as entidades que pratiquem os actos previstos” no âmbito das suas competências definidas na Lei 53/2005.

Esta especifica que a “ERC não pode exercer actividades ou usar os seus poderes fora das suas atribuições”, que passam pela supervisão das entidades de comunicação social. Mas entende-se que são abrangidas “as pessoas singulares ou colectivas que editem publicações periódicas, independentemente do suporte de distribuição que utilizem”, assim como “as pessoas singulares ou colectivas que disponibilizem ao público, através de redes de comunicações electrónicas, serviços de programas de rádio ou de televisão, na medida em que lhes caiba decidir sobre a sua selecção e agregação” e ainda “as pessoas singulares ou colectivas que disponibilizem regularmente ao público, através de redes de comunicações electrónicas, conteúdos submetidos a tratamento editorial e organizados como um todo coerente”.

No seu contributo, a ERC questiona “a dificuldade de determinação da natureza do diploma, o qual pela sua designação aparenta pretender ser um elenco de princípios e direitos fundamentais de que gozam os cidadãos portugueses em ambiente digital, mas que em alguns dos seus artigos estabelece normas processuais e procedimentais a serem adoptada pelas entidades ou destinatários das mesmas”, o que não se coaduna com “uma carta de princípios”.

Esta Entidade aponta ainda que só pode intervir junto de entidades sujeitas à sua supervisão, sem cair na ilegalidade, ou após a alteração dos seus Estatutos.

O debate sobre a Carta focou-se muito na questão da comunicação social sem entender esta abrangência que, aliás, foi debatida há mais de uma década, por poder englobar os blogues (e agora, de forma mais generalizada, também podcasts e vlogs), quando a ERC era dirigida por Azeredo Lopes e Estrela Serrano.

Em 2007, uma deliberação da ERC sobre o site da Câmara Municipal do Porto declarava que, “independentemente do tipo de conteúdos – jornalísticos ou de outra natureza – pode definir-se tratamento editorial como o processo ou conjunto de actividades envolvidas na selecção, transformação e apresentação de uma matéria-prima informativa (normalmente, um acontecimento), com vista à sua divulgação pública através de um suporte mediático”.

Na altura, a ERC resolveu não se imiscuir nos blogues mas perante esta trapalhada, a que se junta a vontade de querer lidar com a desinformação, essa saída parece ser agora mais difícil.

Antes selo do que parecê-lo
Às críticas de não actuação pelos governos na eliminação do problema da desinformação e de deixar o assunto nas mãos das redes sociais, segue-se naturalmente a acusação de censura. O meio-termo é difícil de encontrar, e basta falar com quem acompanhou e se preocupou quando o Twitter bloqueou o presidente Trump ou quando uma rede social faz o mesmo aos defensores da Terra plana ou da não-vacinação, como se não fossem actos de censura.

A lei contorna essa dificuldade com uma outra medida inscrita no artigo 6º para o apoio na “criação de estruturas de verificação de factos por órgãos de comunicação social devidamente registados e incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas dotadas do estatuto de utilidade pública”. Desta forma, potencialmente, o Estado “lava as mãos” de ter de definir quem recebe a estampa qualitativa, atenua o problema da desinformação perante as críticas e esvazia a audiência de quem não consegue o referido selo por se dedicar a informação falsa ou enganadora, normalmente com um objectivo de lucro. Como?

As polémicas sobre este artigo levaram o PS a acelerar uma proposta da sua regulamentação (já escrita mas ainda não votada), “assegurando o apoio a entidades privadas que exerçam actividades de verificação de factos e de atribuição de selos de qualidade”. Essa proposta define que “o Estado incentiva a atribuição de selos de qualidade por entidades fidedignas – com ou sem fins lucrativos – que já sejam ou venham a ser dotadas do estatuto de utilidade pública”. Estas podem ter como actividade o “fact checking” quer em áreas específicas – no domínio da epidemia do Covid, por exemplo – ou serem de âmbito mais abrangente.

Sem proibir ou apoiar as entidades já existentes no “fact checking” (o Polígrafo e o Observador), os “selos de qualidade” também podem vir a ser atribuídos a outros sítios informativos online, “ONGs e outras entidades que não fazem parte do ecossistema mediático”. Mas quem os entrega e ao abrigo de que selecção?

Diz a proposta: “as estruturas dedicadas à verificação de factos criadas por entidades de comunicação social registadas na ERC recebem apoio do Estado desde que ocorra exercício efectivo, a título exclusivo ou predominante, de actividades dirigidas à prossecução dos fins que justificaram a sua criação”.

A verificação de factos não será atribuída a um departamento do Estado mas apenas a entidades privadas não sujeitas a qualquer interferência pública, “idealmente pertencentes a redes internacionais de verificação ou a consórcios dedicados à difusão das boas práticas”, como o Trust Project ou a International Fact-Checking Network (IFCN).

Elas devem existir há pelo menos três anos, terem pessoal e instalações, ter uma página na Internet com “a ficha técnica dos editores e colaboradores e os textos actualizados dos estatutos e dos regulamentos internos”.

A atribuição dos selos partirá das “entidades fidedignas” como as associações de Imprensa, de Imprensa de Inspiração Cristã, de Radiodifusão ou a das Rádios de Inspiração Cristã; a Plataforma de Media Privados (responsável pelo Nónio), a Confederação Portuguesa dos Meios de Comunicação Social ou o Instituto Civil da Autodisciplina da Comunicação Comercial. As regras para a atribuição serão publicitadas nos seus sites.

O Estado não interfere neste processo que, dificilmente, facilitará a criação de entidades independentes não associadas a estas entidades ou não registadas na ERC, como as criadas no mundo académico.

A Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM) alertou para uma outra situação neste âmbito: “a existência de um número elevadíssimo de sites, por si só, prejudica a sua implementação e pode dar origem, por não ser plausível a existência de capacidade para proceder de forma célere à avaliação e atribuição do referido selo de qualidade a todos os sites elegíveis para o efeito, a uma discriminação indevida (prejudicando sites/órgãos por não terem selo de qualidade por ainda não o terem recebido e não por não o merecerem)”.

O que fica desta lei?
Outras medidas que podiam realmente interessar aos utilizadores online foram pouco debatidas, como o direito universal de “comunicar electronicamente usando a criptografia e outras formas de protecção da identidade ou que evitem a recolha de dados pessoais, designadamente para exercer liberdades civis e políticas sem censura ou discriminação”.

Também o uso da inteligência artificial deve ser orientado “pelo respeito dos direitos fundamentais, garantindo um justo equilíbrio entre os princípios da explicabilidade, da segurança, da transparência e da responsabilidade” e que evite quaisquer formas de discriminação, assim como as decisões tomadas por algoritmos devem ser comunicadas aos interessados.

Foi igualmente mínimo o debate sobre o direito a ter apoio no exercício do direito ao apagamento de dados pessoais pelo próprio ou “a título póstumo por qualquer herdeiro do titular do direito, salvo quando este tenha feito determinação em sentido contrário”, bem como o direito ao testamento digital. A Ordem dos Advogados prestou-se a criar uma plataforma “para registo da manifestação de vontade quanto ao direito ao esquecimento póstumo”, semelhante à do registo do testamento vital.

A lei aborda ainda o direito dos utilizadores a ter “informação clara e simples sobre as condições de prestação de serviços quando utilizem plataformas que viabilizam fluxos de informação e comunicação” e, por fim mas bastante importante, garante o direito à acção popular digital, nomeadamente de “reclamação, de recurso e de acesso a formas alternativas de resolução de litígios emergentes de relações jurídicas estabelecidas no ciberespaço”.