Um livro adquirido numa livraria é seu. “Pode levá-lo para casa, rabiscar nas margens, colocá-lo na prateleira, emprestá-lo a um amigo, vendê-lo”. Na edição digital, as coisas alteram-se: os livros deixam de ser seus e “o fornecedor do e-book pode apagá-lo do seu dispositivo sem aviso ou explicação – como a Amazon fez com ‘1984’ de Orwell nos Kindle de surpreendidos leitores” em 2009.

“Se somos os proprietários das nossas compras, somos livres para fazer o uso legal que quisermos”, parece algo que faz todo o sentido “mas isso não é verdade no mundo online”, explicam Aaron Perzanowski e Jason Schultz em “The End of Ownership: Personal Property in the Digital Economy”.

“Um exemplo pode ajudar a ilustrar o problema”, escrevem. “No clássico distópico de George Orwell, ‘1984’, o Ministério da Verdade, a mando do Big Brother, destruiu documentos lançando-os no buraco da memória, uma enorme rede de tubos em direcção a um incinerador”.

Desta forma, e “supondo que tiveram a possibilidade de ler antes o livro, os utilizadores do Kindle ficaram sem dúvida impressionados com a ironia da decisão da Amazon de excluir remotamente as suas cópias compradas de 1984 em resposta a uma disputa com uma editora”.

Esta “lição prática sobre os riscos da leitura digital” está agora a generalizar-se noutras indústrias tão diferentes como em empresas de “airbags” em roupas para motociclistas.

É o que sucede com o modelo Ai-1 da Klim, refere a Motherboard. Ele “inclui dois componentes: o colete feito pela Klim e o sistema de ‘airbag’, que inclui uma pequena caixa preta feita pela empresa francesa In&Motion, chamada de ‘módulo de detecção In&Box'”. São os sensores neste módulo que detectam uma colisão e activam o “airbag”.

O Ai-1 é vendido por 400 dólares mas o seu utilizador tem de obter uma aplicação “e escolher como desbloquear o módulo para que o colete funcione realmente: ou paga mais 400 dólares para adquirir o conjunto completo – elevando o custo total para 800 dólares”, ou pode optar por uma “assinatura” de 12 dólares/mês ou 120 dólares/ano. Se não pagar a renovação mensal no espaço de 30 dias, o “airbag” deixa de funcionar.

Mais rebuscada são as constantes actualizações dos automóveis Tesla.

No ano passado, a empresa lançou a opção “Full Self-Driving“, mostrando carros que aparentemente se conduziam sozinhos. “Então algo estranho aconteceu”, conta o Washington Post.

“O gigante dos veículos eléctricos revogou o acesso de alguns condutores” mas não explicou como determinou “quem, entre os 2.000 testadores beta do recurso – que pagaram milhares de dólares pelo pacote que a Tesla agora vende por 10 mil dólares -, perdeu o acesso”.

A decisão sintetiza o modelo adoptado pelas empresas tecnológicas: não são os consumidores mas elas quem controla o que eles podem ter.

Os veículos da Tesla são conhecidos como “iPhones sobre rodas”, porque deram “um salto tecnológico revolucionário que fez para os carros o que o smartphone da Apple fez para a tecnologia de consumo”.

Como a Apple, explica o diário, “a Tesla construiu a sua marca com base em produtos exclusivos e ambiciosos, priorizando a experiência de propriedade tanto quanto a utilidade do próprio dispositivo. E ambas as empresas integraram software com hardware de uma forma que revolucionou os seus sectores, tornando a transição para novas tecnologias relativamente intuitiva até mesmo para o utilizador que não entende de tecnologia”.

Os consumidores ficam assim “presos ao universo da Tesla, como os clientes da Apple ao ecossistema” desta empresa. Eles ficam à mercê das empresas, incluindo nas exclusivas actualizações de software.

Ambas “as empresas têm muito em comum”, segundo ex-funcionários que trabalharam nas duas empresas. “A Tesla não é uma empresa de automóveis, é uma empresa de tecnologia que fabrica carros”, disse um deles. E desta forma, como a Amazon, a Apple ou outras empresas tecnológicas antes dela, pode impedir os utilizadores de usarem bens que adquiriram e pelos quais pagaram.