Com a ajuda de programas de inteligência artificial (IA) e redes neuronais, filmes registados há mais de um século estão a regressar coloridos, com uma excelente definição e uma qualidade sem riscos. Mas alguns historiadores discordam desta re-escrita da história visual.
Os exemplos são vários, desde o renovado “A Trip Down Market Street”, em São Francisco (EUA), filmado originalmente na década de 30 do século passado, a Nova Iorque em 1901, num momento que Marilyn Monroe não desdenharia, ou nas viagens e incêndio do zeppelin Hindenburgh.
Pode-se ainda conhecer um “Flying Train” numa cidade alemã em 1902 ou uma Pequim filmada na década de 1910-1920:
No seguinte vídeo, apresentam-se excertos de 21 filmes de 1895 a 1902 após o tratamento tecnológico:
Uma evolução do tratamento digital a que um destes antigos filmes está sujeito é visível nesta “Battaille de neige”, filmada pelos irmãos Lumière em 1986/7 e depois melhorada graficamente até se chegar a um pequeno segmento colorido.
Apesar de poder parecer interessante ver estas evoluções, está-se perante uma disputa semelhante ao que ocorreu com a colorização dos filmes. Feita manualmente desde o início do cinema, elas aceleraram com a introdução das ferramentas digitais na década de 70 do século passado, até ao “escândalo” de colorir “Casablanca”, em 1988, pelo então odiado patrão da CNN, Ted Turner.
“Não adianta tentar convencer Turner de que colorir é um mal – que ele está a poluir a imaginação de incontáveis jovens que verão ‘Casablanca’ pela primeira vez numa versão colorida. Só se pode ver um filme pela primeira vez uma vez. E se a primeira exibição for colorida, nunca se será capaz de sentir todo o impacto original do filme real”, escreveu um crítico.
Algo semelhante está a ser defendido pelos historiadores para tentar contrariar a origem e disseminação de vários filmes coloridos e com uma maior definição, obtidos pela mistura técnica da IA.
Os seus autores defendem que estão a modernizar o passado para os interessados do século XXI mas, para “alguns historiadores da arte e da criação de imagens, a modernização de arquivos centenários levanta uma série de problemas. Até mesmo adicionar cor a fotografias a preto e branco é fortemente contestada”, apontou a Wired.
“O problema com a colorização é que leva as pessoas a pensarem nas fotografias apenas como uma espécie de janela descomplicada para o passado, e não é isso que elas são”, disse à revista Emily Mark-FitzGerald, da School of Art History and Cultural Policy da University College Dublin.
Para Luke McKernan, curador de imagens em movimento na British Library, “a colorização não nos aproxima do passado; aumenta a lacuna entre agora e então. Não permite imediatismo; isso cria diferença”.
Denis Shiryaev é um dos criadores destes vídeos, através da sua empresa polaca Neural Love. Disse à Wired que considerava o seu “trabalho uma adaptação do original, semelhante a uma versão moderna de Shakespeare ou a tradução de literatura para outro idioma” e “as escolhas (ou, neste caso, tecnologia) envolvidas com a transformação do original têm o seu próprio mérito artístico, mas o conteúdo original ainda é a sua própria forma de arte independente (e merece ser experimentada como tal). O nosso trabalho visa transformar o acesso e a consciência dos originais, não colocar desafios à sua autenticidade ou mérito artístico”.
Mortos animados
A evolução tecnológica e o uso da IA prometem uma evolução ainda mais geradora de discussões, quando já se pode pegar numa fotografia de alguém falecido e obter um – por enquanto – pequeno vídeo de uma versão digital dessa pessoa. E ela até pode sorrir.
De Amelia Earhart a Marie Curie ou a inúmeros desconhecidos, as animações geradas por IA podem ser assustadoras (ou potenciais suportes para esquemas de aldrabões…) mas o seu interesse já foi demonstrado: o site de genealogia MyHeritage introduziu esta funcionalidade denominada Deep Nostalgia a 25 de Fevereiro passado e a empresa criadora da tecnologia, a D-ID, revelou uma semana depois que ela tinha servido para “animar” 26 milhões de rostos.