Quando a administração Trump ordenou que os hospitais reportassem os dados da Covid-19 ao Department of Health and Human Services (HHS), em vez de o fazer aos Centers for Disease Control and Prevention (CDC) como estavam a fazer, isso provocou preocupações e críticas de especialistas em saúde pública. A Casa Branca disse que o sistema dos HHS iria fornecerr dados mais precisos com mais rapidez, mas a mudança levantou preocupações de que considerações políticas influenciariam o registo dos dados. A professora de políticas públicas Julia Lane, que publicou no ano passado o livro “Democratizing Our Data: A Manifesto” [excertos], explica por que os dados públicos são vitais para a saúde pública e a democracia em geral.

Qual foi a principal preocupação com os dados?
O objectivo de ter um serviço público de carreira a administrar sistemas de dados públicos é que, como não podem ser demitidos, eles têm integridade para produzir as estatísticas da melhor maneira possível. E é isso que torna o governo federal e os governos estaduais e locais em motores de dados de elevada qualidade.

Agora, a preocupação que surgiu é a aparência de ingerência política. Quem sabe o que realmente aconteceu. Mas a questão é que, se houver pressão política sobre a medição, isso pode afectar substancialmente os [dados] agregados. A linguagem da administração não ajudou de forma adequada a causa dos funcionários públicos de carreira.

Por que é importante ter dados públicos precisos e transparentes?
Quando se tomam decisões que são importantes para todos os cidadãos do país, ou a população do país como um todo, então são precisos bons dados para poder alocar esses recursos. Agora, se esses dados forem tendenciosos de alguma forma, as pessoas não serão contadas. E se elas não forem contadas, não vão receber recursos.

As pessoas são importantes. Uma democracia é um governo do povo, pelo povo e para o povo. Se não se sabe quem é o povo, não se tem um sistema democrático de governo. E se não tiver dados de elevada qualidade, podem-se cometer muitos erros. Por exemplo, não tínhamos dados de elevada qualidade sobre a crise dos opióides. E assim, isso surpreendeu todos como era tão maus, porque não tínhamos como a medir.

O que acontece quando os dados do governo são influenciados pela política?
Nos Estados Unidos, não acho que isso tenha sido um grande problema, embora possa dar um exemplo em que os dados do governo foram influenciados pela política. Mas certamente nas ditaduras, os dados do governo são influenciados pela política porque quando se controla a mensagem dos dados, controla-se uma quantidade enorme de mensagens que estão a acontecer no país. Qualquer pessoa que trabalhou para o Banco Mundial ou em países totalitários pode dizer que os dados do governo são a primeira coisa que desaparece.

Agora, vou dar um exemplo dos Estados Unidos, que está muito bem documentado. Em 1940, o U.S. Census Bureau foi solicitado a fornecer informação tabular sobre a localização dos japoneses americanos. Esta foi a informação usada para apanhar pessoas e colocá-las em campos de internamento – nipo-americanos em campos de internamento.

As pessoas dependem de fontes não governamentais, como a Johns Hopkins University ou os media, para obter dados sobre a disseminação do vírus. Quais são alguns problemas potenciais com os dados de instituições privadas?
O desafio é se não se tem uma fonte fiável e o que está acontecer é que as pessoas estão a procurar várias outras fontes. Então, estão a ir para a Johns Hopkins, Worldometer ou 1Point3Acres – as pessoas estão a obter os seus dados de muitas fontes diferentes.

Eu não quero caluniar qualquer um desses conjuntos de dados, mas como os dados que eles divulgam se comparam com alguma medida de verdade fundamental? Como persiste a recolha de dados ao longo do tempo? Como se normalizam as medidas entre os países? Com instituições privadas, talvez as pessoas estejam a tentar vender coisas. Talvez haja marketing envolvido ou haja um motivo de lucro.

Como melhorar os nossos sistemas de dados públicos?
O que falo no livro “Democratizing Our Data: A Manifesto” é reduzir o poder de monopólio no sistema federal. Se tem um poder de monopólio, tem-se um único ponto de falha, e isso torna-o vulnerável a essas pressões políticas que estamos a ver.

Assim, estou a falar de um sistema em rede que leva o desenvolvimento de medidas e de indicadores para os estados e áreas locais – as regiões que estão mais próximas dos dados e têm uma noção melhor da forma como os dados são gerados. Mas combine-se isso com o sistema federal para obter consistência, aquele foco de qualidade de que falei.

O sistema actual claramente não está a funcionar. Quando escrevi o livro, não esperava que a pandemia do coronavírus destacasse todas as fragilidades no nosso sistema de recolha de dados. Falo muito mais sobre PIB e desemprego. Mas todas as fragilidades do nosso sistema actual estão a ser expostas com a pandemia da Covid-19.

* Texto de Julia Lane publicado pela The Conversation. Reproduzido sob licença (CC BY-ND 4.0). Imagem: Worldometers.