Um grande abismo entre a China e a Rússia surgiu durante a disputa sino-soviética de 1956, e as tensões entre os dois países continuaram a persistir nos anos imediatamente posteriores à queda da URSS, com uma Moscovo inicialmente flexível a olhar para o Ocidente à procura de alianças. Foi apenas em 2008 que ambas as nações finalmente resolveram uma disputa de fronteira de longa data, abrindo caminho para os laços do período actual.
Nesse período, os decisores políticos dos EUA procuraram encurralar uma Rússia enfraquecida num projeto para cercar a China. O Ocidente exagerou e tentou fazer ajoelhar a Rússia através da expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO) em direcção à Europa Oriental, quebrando uma promessa feita durante a dissolução da República Democrática Alemã (RDA). O poder russo parecia destinado a ser totalmente drenado quando o Ocidente ameaçou os dois únicos portos de água quente da Rússia em Sebastopol (Crimeia) e em Tartus (Síria). Um conjunto de outras acções agressivas do Ocidente contra a Rússia – incluindo a expulsão do país do G8 em 2014 e um severo regime de sanções instituído pelos EUA – atingiu interesses vitais russos, ofendeu enormemente a opinião nacional russa, que estava profundamente envolvida com os eventos na Ucrânia, e empurrou a Rússia para um maior alinhamento com a China.
Em 2019, os presidentes dos dois países, Xi Jinping e Vladimir Putin, falaram no Fórum Económico Internacional, em São Petersburgo, uma reunião anual de negócios iniciada em 1997, cujo escopo inclui cada vez mais a avaliação das relações da Rússia com a Ásia, bem como com o Ocidente. Xi e Putin falaram dos laços próximos entre os seus países, enfatizando que os dois se tinham encontrado pessoalmente pelo menos 30 vezes desde 2013.
Entre os muitos acordos para incrementar o comércio, os dois líderes concordaram em aumentar o comércio bilateral usando o rublo e o yuan – em vez do dólar – para reconciliar os pagamentos transnacionais. Esse desprezo não foi a única coisa que alarmou Washington. O mesmo aconteceu com o aumento nas vendas de armas entre os dois países, que ocorria com exercícios militares conjuntos mais frequentes: em Setembro de 2018, um terço dos soldados russos participou nos exercícios militares Vostok-2018 entre as duas potências. Em Outubro de 2020, quando Putin foi questionado se formaria com a China uma “aliança militar”, respondeu: “Não precisamos disso mas, em teoria, é perfeitamente possível de imaginar”.
O enfraquecimento da Rússia em termos políticos e militares fez certamente parte da expansão da NATO para o leste, mas a China tem sido o principal alvo económico dos EUA e dos seus aliados. Em particular, há uma grande ansiedade em relação ao desenvolvimento das empresas chinesas de alta tecnologia que produzem equipamentos e software para telecomunicações, robótica e inteligência artificial, entre outras. Uma coisa era a China ser a oficina do mundo, os seus trabalhadores serem empregados por corporações multinacionais, enquanto as suas próprias empresas permaneciam no sector da tecnologia média; outra é tornar-se um importante produtor tecnológico mundial. Essa é a razão pela qual o governo dos EUA, empurrado por empresas de Silicon Valley, foi atrás da Huawei e da ZTE. Em Abril de 2019, o Defence Innovation Board (DIB) escreveu: “O líder do 5G deve ganhar milhares de milhões de dólares em lucros na próxima década, com ampla criação de empregos em todo o sector das tecnologias sem fio. O 5G também tem o potencial de revolucionar outras indústrias, já que tecnologias como os veículos autónomos obterão enormes benefícios com a transferência de dados mais rápida e maior. O 5G também irá melhorar a Internet das Coisas (IoT, sigla em inglês), aumentando a quantidade e a velocidade do fluxo de dados entre vários dispositivos, e pode até mesmo substituir a infra-estrutura [backbone] de fibra óptica usada em tantos lares. O país que possuir 5G possuirá muitas dessas inovações e definirá as normas para o resto do mundo”.
Esse país não será provavelmente os EUA. Mesmo o DIB admite que nem a AT&T nem a Verizon serão capazes de fabricar o tipo de transmissor necessário para os novos sistemas. É também pouco provável que a Suécia (Ericsson) ou a Finlândia (Nokia) o consigam, já que as empresas chinesas estão muito à frente. Essa é uma grave ameaça às perspectivas futuras da economia dos EUA, razão pela qual o governo tem usado todos os instrumentos para restringir o crescimento da China.
Nenhuma das acusações amplamente falsas contra as empresas chinesas (de roubo de propriedade intelectual ou de erosão da privacidade) dissuadiu clientes em todo o mundo. O que impediu as perspectivas comerciais dessas empresas foi a pressão política directa dos EUA sobre os governos para conter ou proibir a entrada da Huawei e da ZTE. Os EUA reconhecem que o rápido crescimento tecnológico chinês é uma ameaça geracional à principal vantagem que tiveram nas últimas décadas, ou seja, a sua superioridade tecnológica. É para evitar a ascensão tecnológica do país asiático que os EUA têm usado todos os recursos, desde a pressão diplomática até à militar, mas nenhuma delas parece estar a funcionar.
A China, por enquanto, está decidida. Não está disposta a recuar e a desmantelar os seus ganhos tecnológicos. Nenhuma resolução é possível a menos que haja um reconhecimento da realidade: a China é igual ou mais avançada do que o Ocidente em termos de produção tecnológica em alguns sectores, e a tendência é para aumentar gradualmente, e não é nada que precise de ser ou possa ser revertido por meio da guerra.
Em 2001, o então vice-presidente da China, Hu Jintao, disse que “a multipolaridade constitui uma base importante na política externa chinesa”. A China continua comprometida com a multipolaridade, evitando qualquer perspectiva de um “século chinês” após o “século americano”. A posição chinesa é espelhada nalguns dos documentos estratégicos dos EUA, como no relatório “Global Trends 2030: Alternative Worlds” de 2012 do National Intelligence Council, que afirma que “até 2030, nenhum país – os EUA, a China ou qualquer outro grande país – será um poder hegemónico”. O que existirá, em vez disso, é uma “difusão do poder”. Mas outros membros da comunidade de análise estratégica dos Estados Unidos, como Richard N. Haass, presidente do Council of Foreign Relations, argumentam que, se os Estados Unidos não continuarem a sua “liderança” da ordem global, a alternativa “não é uma era dominada pela China ou qualquer outro país, mas sim um tempo caótico em que os problemas regionais e globais oprimirão a vontade colectiva mundial e a capacidade de os enfrentar” [Richard Haass, “How to Build a Second American Century”, Washington Post, 26 de Abril de 2013; Stephen Brooks e William C. Wohlforth, “World Out of Balance: International Relations and the Challenge of American Primacy”, Princeton University Press, 2008].
A multipolaridade, ou um declínio na primazia dos EUA, afirma Haass, trará o caos: “Os americanos não estariam seguros ou seriam prósperos em tal mundo”, escreveu Haass em “Foreign Policy Begins at Home” (2013). “A nossa Idade das Trevas já foi suficiente; a última coisa que precisamos é de outra”. Para liberais como Haass ou neofascistas como Trump, não há substituto para a primazia dos EUA. É esse fracasso das elites dos EUA em compreender a inevitabilidade de um futuro multipolar que as leva a novas guerras frias, perigosas intervenções militares e guerras híbridas de todos os tipos.
Guerra híbrida
Em 2015, Andrew Korybko publicou o fascinante livro “Hybrid Wars: The Indirect Adaptive Approach to Regime Change“. Através da leitura de documentos militares públicos e outros extraviados dos EUA, Korybko expôs as várias estratégias usadas para derrubar governos tidos como entraves ao poder dos EUA. Korybko explica o objectivo de uma guerra híbrida citando o documento do Exército dos EUA classificado como “Special Forces Unconventional Warfare”: “degradar o aparato de segurança do governo (os elementos militares e policiais do poder nacional) ao ponto em que o governo fique susceptível à derrota”. A questão nem sempre é substituir um governo hostil aos interesses dos EUA por outro favorável a ele. “Na sua essência, a guerra híbrida é o caos administrado”, escreve Korybko. Um conflito de baixa intensidade que gradualmente esvazia o país da sua resiliência e cria confusão na região é talvez o objectivo dos tipos de conflitos que são processados por guerras da informação e sanções, dois elementos-chave no conjunto de ferramentas da guerra híbrida.
Com base em Korybko e numa série de documentos do governo dos EUA, quatro dos aspectos mais importantes da estratégia da guerra híbrida são a guerra informacional, diplomática, económica e política.
[Sobre a guerra informacional], em 1989, William Lind, um autor que ajudou a desenvolver a teoria da guerra de quarta geração (um sinónimo para guerras híbridas), escreveu que “as notícias da televisão podem tornar-se uma arma operacional mais poderosa do que as divisões blindadas” [William S. Lind e Gregory A. Thiele, “4th Generation Warfare Handbook”, 2015]. Controlar as informações e definir pessoas e eventos molda a maneira como os conflitos são entendidos. O controlo sobre o enredo é essencial, mas esse controlo não pode ser visto como propaganda nua e crua. A narrativa é tão cuidadosamente definida que tudo o que vem de um “Estado pária” é interpretado como falso, e o que os EUA e os seus aliados dizem é visto como verdadeiro. Mesmo que sejam feitas declarações falsas – como a de o Iraque ter armas de destruição em massa –, elas são consideradas erros e não mentiras.
Ideias racistas profundamente arreigadas são mobilizadas para conceber certos líderes como ditadores – ou mesmo como genocidas –, enquanto líderes ocidentais que enviam bombardeiros para aniquilar cidades são vendidos como humanitários. Esse exercício básico de gestão da imagem de líderes políticos é característico do poder da guerra da informação. Os Estados Unidos podem ser responsáveis por mais de um milhão de mortos no Iraque, mas será sempre Saddam Hussein – e não George W. Bush – quem será visto como criminoso de guerra e, portanto, merecedor do seu terrível destino. Os muçulmanos são sempre terroristas, os russos sempre mafiosos ou espiões, e o Estado considerado adversário não é liderado por um governo mas por um “regime”. Reivindicações descontroladamente desequilibradas sobre violações dos direitos humanos tornam-se uma ferramenta central para deslegitimar dissidentes, seja por Estados como por movimentos populares. Há uma “porta giratória” entre a Human Rights Watch, organização criada por actores dos EUA durante a Guerra Fria, e funcionários de política externa do governo dos EUA.
* Texto adaptado do original publicado pela Tricontinental. Reproduzido sob licença (CC BY-NC 4.0). Fotos: HJ Media Studios (CC BY-SA 2.0), U.S. Army (CC BY 2.0).
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