A Associação D3 – Defesa dos Direitos Digitais defendeu em comunicado que alunos e professores devem recusar os computadores distribuídos pelo programa Escola Digital.
O Governo diz já ter entregue 100 mil equipamentos mas “um milhão e 130 mil computadores é o objectivo da universalização, porque é o número de alunos e de professores que temos em Portugal. São um milhão e nove mil alunos e são 120 mil professores”, disse em entrevista o Secretário de Estado para a Transição Digital (SETD), André de Aragão Azevedo.
A concretização desses números agora conhecidos estão naturalmente atrasados após o primeiro-ministro António Costa ter declarado em Abril passado que “assumimos um objectivo muito claro: vamos iniciar o próximo ano lectivo assegurando o acesso universal à rede e aos equipamentos a todos os alunos dos ensinos básico e secundário”.
O processo pode ser acelerado se a Comissão Europeia aceitar o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), ainda em consulta pública antes de ser enviado para Bruxelas. Este terá um período de execução até 2026, com valores de cerca de 14 mil milhões de euros de subvenções, e está organizado nas três dimensões da resiliência, transição climática e transição digital.
Esta última está orçamentada em 559 milhões de euros e contempla-se a aquisição de 260 mil computadores de uso individual para alunos e professores (embora em comunicado se fale de 215 mil para o mesmo fim).
O PRR prevê ainda a aquisição de 15 mil equipamentos adequados às necessidades administrativas e de gestão dos agrupamentos escolares; aumentar a conectividade na Rede Alargada da Educação para 300 Gbps; a criação de cerca de 1.160 laboratórios de educação digital; e a instalação de equipamentos de projecção em 43 mil salas de aula.
Caixa fechada sem actualizações?
Para a D3, o modelo de distribuição destes computadores não é convincente porque “implica a cedência dos computadores somente a título de empréstimo”.
O documento sobre o programa Escola Digital, esclarece que “serão distribuídos 2 kits pelos beneficiários: o kit do computador e o kit da conetividade”. No primeiro caso, “há três modelos de equipamento, que variam consoante o nível de ensino que o/a aluno/a frequenta”, destinados aos três ciclos do ensino básico e ao ensino secundário.
Os computadores têm pré-instalado o sistema operativo Windows 10 Pro Educação, devendo as escolas assegurar a instalação de outros programas de software (colaboração, gestão educativa e outros desde que sejam “necessárias ao respectivo contexto educativo, tendo em conta o sistema operativo indicado”.
A cedência dos equipamentos é anual e eles devem ser devolvidos mesmo quando o aluno transita do primeiro para o segundo ciclo de ensino básico, por exemplo.
O programa Escola Digital está sob a alçada de três entidades: em termos administrativos, a Secretaria-Geral da Educação e Ciência é a proprietária dos equipamentos, assegura a sua cedência, gere os contratos com os fornecedores e prestadores de serviços e dá apoio às escolas.
Algumas destas funções cabem também à Direção-Geral dos Estabelecimentos Escolares, responsável ainda pelo suporte à plataforma de registo de equipamentos e resolução de problemas na sua utilização.
Por último, a Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, é a entidade responsável pelo registo de incidentes e de pedidos, apoio e resolução de problemas na sua utilização e responsável pelas infra-estruturas de comunicação.
No entanto, os próprios agrupamentos de escolas (AE) podem aparentemente acrescentar directrizes próprias ao programa. Por exemplo, um AE da região centro solicita a devolução dos equipamentos quando o aluno é transferido para outro AE ou “em caso de aplicação de medidas disciplinares sancionatórias aos alunos que determinem a ‘transferência de escola’ ou a ‘expulsão da escola'” – algo que não está no Guião de Utilização pelas Escolas que esse mesmo estabelecimento divulga no seu site.
Internet ilimitada com limites
Em termos de conectividade, a oferta de âmbito educativo permite a “utilização de dados ilimitada, exclusivamente em contexto educativo e com uma utilização responsável” – sem se definir o que é essa utilização.
Quando questionado sobre se o acesso à Internet será ilimitado, o SETD nota como “a ideia que também está tratada com os operadores é de que haja aqui uma capacidade de fazermos alguma selecção do tipo de serviços que estão disponíveis para que consigamos garantir que o consumo de dados só é elegível se for para contexto educativo”.
No entanto, a Nos já veio garantir que a Internet “emprestada” pelo Governo “não distingue tráfego” mas “fica mais lenta quando é passado um dado limite”. A operadora afirma que apesar de haver “muitos” alunos a aceder “para fins lúdicos” fora do período escolar, não tem prevista “qualquer limitação do tipo de tráfego”.
“Os procedimentos definidos pelo Governo para contratação da conectividade móvel no âmbito do programa Escola Digital não preveem, à data de hoje, qualquer limitação do tipo de tráfego”, esclarece a operadora ao Eco. “Os beneficiários tanto podem usar o acesso que lhes é disponibilizado gratuitamente para fins educativos, como para fins lúdicos (ex. YouTube, Netflix)”.
A operadora cita dados recentes internos que “já apontam para uma alteração significativa no perfil de consumo destes utilizadores [alunos], tendo-se registado um aumento considerável de tráfego em aplicações que não as de âmbito educacional, em períodos fora do horário escolar”. Esta utilização “coloca uma pressão desproporcional e injustificada sobre as redes, que poderá conduzir à degradação da qualidade dos serviços para a generalidade da população, incluindo os serviços críticos, e inviabilizar a sustentabilidade e continuidade de tais ofertas”, refere-se.
Neutralidade ou degradação da rede?
As declarações da operadora não parecem estar sustentadas no tráfego recente do GigaPix, não parecem violar a neutralidade da rede e, apesar da “oferta ilimitada” educativa, poderá ser ressarcida pela disponibilização paga de pacotes adicionais de acesso à Internet assegurados às operadoras na oferta da Escola Digital.
As operadoras não se podem aproveitar do estado de emergência para violar a neutralidade da rede que, segundo a Anacom, leva a que “os operadores tratam de forma igual todo o tráfego online, independentemente do tipo de conteúdos e serviços em causa, do respectivo emissor ou receptor ou dos equipamentos utilizados”. Assim se garante que “os vídeos de uma pequena empresa são transmitidos à mesma velocidade do que os vídeos de um gigante como o YouTube”.
Desta forma, os operadores estão impedidos de “bloquear certos conteúdos ou reduzir substancialmente a sua velocidade”, explica a entidade reguladora das comunicações.
No segundo caso, não parece ter havido degradação recente no GigaPIX, um nó central onde diferentes operadores e serviços se interligam de forma mais eficiente, evitando que o tráfego de dados com origem e destino para Portugal não necessita de usar recursos de comunicações internacionais. A Nos é membro do GigaPIX.
No comunicado enviado ao Eco, a operadora recorre ainda ao decreto-lei com o novo estado de emergência que entrou em vigor esta segunda-feira, afirmando que o mesmo permite “aos operadores condicionar o acesso a algumas aplicações, como forma de preservar a qualidade de acesso à Internet para a generalidade da população” e que este serviço “gratuito para alunos e professores perdurará para além do Estado de Emergência”.
No entanto, o diploma com as “medidas excepcionais e temporárias relativas ao sector das comunicações electrónicas no âmbito da pandemia da doença Covid-19” considera ser “essencial, acima de tudo, assegurar a continuidade da prestação de serviços de comunicações electrónicas aos clientes prioritários, designadamente as entidades prestadoras de cuidados de saúde, as forças e serviços de segurança e administração interna”.
Não há qualquer referência à “generalidade da população”, excepto na necessidade de “acautelar a identificação dos serviços de comunicações electrónicas que devem ser considerados críticos” e “assegurar a prestação ininterrupta de tais serviços críticos à população em geral”.
Por outro lado, estas medidas excepcionais “devem ser executadas de forma proporcional e transparente, não podendo basear-se em razões de ordem comercial nem ser mantidas por mais tempo do que o estritamente necessário para assegurar a continuidade dos serviços em situação de congestionamento da rede e para ultrapassar a resolução das avarias”.
O documento para a Escola Digital assegura que será “disponibilizado um pacote de 2GB de dados por mês, para utilização livre, com possibilidade de reforço com carregamentos adicionais e emissão de factura através das caixas Multibanco”. A despesa por esse reforço é da “total responsabilidade” de encarregados de educação ou de alunos.
Neste âmbito, não se percebe a disponibilidade dos 2G de dados “para utilização livre” quando os “equipamentos cedidos destinam-se a ser utilizados, exclusivamente, para fins do processo de ensino e aprendizagem do aluno”. Aliás, no anexo IV do Guião, a lista de incidências refere como problema a reposição do “plafond esgotado”, que deverá ser resolvido com um “carregamento nas caixas Multibanco, utilizando a funcionalidade habitual de carregamento de telemóvel”, pelos pais ou alunos maiores de idade.
Empréstimo ou doação?
Para a D3, a proibição de instalação de novo software ou hardware sem autorização pelo ministério ou direcção das AE, a quase impossibilidade de sair com o computador de casa ou da escola ou a sua devolução no final do ciclo de estudos são “condições são excessivamente restritivas, não permitindo uma verdadeira transição digital acessível a todos, em condições mínimas de igualdade de oportunidades”.
“Não se pode querer promover a capacitação digital dos alunos ao mesmo tempo que os proibimos de instalar software, limitando assim todo o potencial de exploração e de aprendizagem que um computador pode permitir”, diz Eduardo Santos, presidente da D3, em comunicado.
As críticas visam igualmente o panorama da disseminação informática em ambiente escolar mesmo não sendo “uma medida de emergência, justificada pela pandemia, em que o importante seria garantir que todos os alunos tinham pelo menos forma de acompanhar as aulas através de um computador”. Na interpretação da D3, “o governo acha mesmo que o programa é tão bom que deve ser estendido a todos os alunos e professores”.
Assim, recomenda a quem o puder fazer que recuse a “oferta” e opte por um “computador velho e/ou em segunda mão” sem tantas limitações.
Em termos económicos, a organização recomenda ao governo que o Estado ceda os computadores a famílias carenciadas, sem restrições, até para evitar a recusa de famílias que se possam ver obrigadas a pagar pelo extravio ou danos por queda dos equipamentos. Tanto mais quando, se o equipamento for roubado, o aluno não é elegível para receber um novo.
“Não se compreende por que razão quer o Estado manter a propriedade sobre estes computadores”, nota Eduardo Santos. “Não são manuais escolares, são equipamentos informáticos, portanto bens de desvalorização rápida, ainda por cima de baixa gama, e com uma longevidade que está longe de ser extraordinária”.
O PCP defendeu ontem a entrega de computadores e de acesso à Internet gratuitos para os alunos do ensino obrigatório, enquanto a associação de defesa dos consumidores DECO, o CDS-PP e o PAN advogaram a sua dedução como despesa de educação no IRS.
Fotos e imagens: Mike Licht (CC BY 2.0), MTSOfan (CC BY-NC-SA 2.0), Gigapix,