Ex-funcionários acusam a Huawei de discriminação. O quão massivamente a empresa interfere nas suas vidas privadas e como mantém a sua equipa sob controlo é revelado por documentos internos e gravações de áudio secretas que a netzpolitik.org e os parceiros de media da The Signals Network analisaram.
O jornalista com a câmara causou nervosismo. Minutos após ele aparecer em frente à sede europeia da Huawei, em Dusseldórfia, em meados de Novembro, um guarda de segurança atarracado e uma funcionária aparecem a correr. A rua em frente ao prédio é um espaço público, mas a empresa parece sentir que a sua relva foi violada. “O que quer daqui?”, pergunta a mulher. “Apague as fotos”.
As percepções sobre o funcionamento interno da controversa empresa de telefonia móvel chinesa são raras. A Huawei tem cerca de 200 mil funcionários em todo o mundo e cerca de 2.400 na Alemanha, de acordo com a empresa. Na sede europeia, uma placa na área de entrada diz “Somos Um Empregador de Excelência!” Abaixo dela, orquídeas decoram a mesa da recepção. No corredor, há uma foto de um grupo de caminhada posando e acenando no topo de uma montanha.
O que vozes nos dizem de dentro, por outro lado, desmentem a impressão de uma atmosfera amigável. Elas falam de uma empresa de tecnologia que parece ver os seus funcionários acima de tudo como matéria-prima a partir da qual deseja forjar o seu próprio sucesso. Sobre uma empresa que movimenta funcionários chineses como peças de xadrez, que despede funcionários à vontade e onde prevalece um “esprit de corps” quase militar. Na Alemanha, a empresa por vezes viola o espírito, talvez até a letra, da legislação laboral.
Este artigo é o resultado de meses de investigação sobre documentos analisados pelos parceiros de media da The Signals Network, incluindo The Daily Telegraph (Reino Unido), El Mundo (Espanha), Republik (Suíça) e netzpolitik.org (Alemanha). A Signals Network coordenou a colaboração nesta investigação internacional. Os documentos que vimos mostram como a Huawei entra na vida dos seus funcionários para atingir os seus objectivos.
Falámos com pessoas que trabalharam para a empresa em vários países europeus. As nossas fontes vêm da China, mas também da Alemanha, trabalharam para diferentes subsidiárias e departamentos. Alguns ex-funcionários falam bem da corporação, enquanto vários entrevistados fazem acusações graves. Para proteger as nossas fontes, evitámos, na maioria dos casos, mencionar nomes e outros detalhes que possam torná-los identificáveis.
A “cultura do lobo” da Huawei
Os seus relatos pintam o quadro de uma empresa que é celebrada em público pela sua filosofia de gestão aparentemente moderna, mas ao mesmo tempo leva os funcionários aos limites. Os ex-funcionários falam de uma cultura corporativa tóxica que é promovida pela administração da empresa. A enorme pressão para o sucesso também desempenha um papel.
Quem alinha com isto é recompensado pela Huawei com pagamentos especiais vinculados às acções da empresa. Mas o que acontece quando os trabalhadores se recusam a colocar as suas vidas inteiramente ao serviço do empregador é mostrado por e-mails internos e gravações de áudio secretas obtidas pela netzpolitik.org e os seus parceiros de media, bem como em processos judiciais em vários países. Os casos trataram de discriminações e demissões que nunca deveriam ter acontecido perante a lei.
Qualquer pessoa que ouvir com atenção o fundador da Huawei, Ren Zhengfei, e prestar atenção à sua retórica inflexível e guerreira, perceberá que a Huawei não faz segredo da sua verdadeira cultura corporativa. Ren apimenta os seus discursos com metáforas militares e orgulhosamente denomina o seu estilo rude de liderança de “cultura do lobo”. Também na Europa reina essa “cultura do lobo”.
Melhores empregos provavelmente apenas para funcionários da China
Nem todos são iguais na hierarquia rígida da Huawei. Metaforicamente falando, a empresa possui dois andares e os funcionários sem raízes chinesas podem ocupar apenas o andar inferior – não importa onde estejam no organograma oficial. O nível superior é reservado para expatriados, chineses que são enviados da sede da empresa em Shenzhen para subsidiárias em todo o mundo.
Um ex-funcionário diz que existe efectivamente um tecto de vidro para os trabalhadores europeus. “Quando se anda pelos corredores, é muito óbvio que 99,9% da administração é chinesa”. Isso é provavelmente um exagero, mas tem um núcleo de verdade.
O domínio chinês reflecte-se no nível de gestão do grupo global, que afirma operar em 170 países em todo o mundo. Dos 17 membros do conselho de administração da Huawei, 17 são chineses. O chefe da Huawei Alemanha também é chinês, acompanhado por um alemão como Director Técnico.
Os cargos de gestão ocupados por habitantes locais parecem ser pouco mais do que fachada. “Cada gestor alemão tinha um gestor paralelo da China atrás dele“, diz um ex-funcionário da sede europeia.
Um porta-voz da Huawei contradiz esse relato. Ele diz que os gestores alemães não são perseguidos por “supervisores” chineses, nem existe um tecto de vidro para os não-chineses. Ele afirma que apenas 59% da gestão são funcionários destacados da China.
Ao mesmo tempo, o porta-voz afirma que nalguns departamentos existem “estruturas comprovadas de duas cabeças com uma distribuição de tarefas clara e sensata”. Segundo ele, é tarefa dos gestores locais cuidar dos clientes locais, do desenvolvimento do mercado e do cumprimento da legislação local. A gestão chinesa, por outro lado, serve de interface para o nível de gestão chinês.
O que fica claro é que, de acordo com a esta investigação, regras diferentes presumivelmente se aplicam na Huawei para os não-chineses. Eles têm menos acesso a informações e são excluídos de importantes decisões internas, reportam as nossas fontes. Nas reuniões, o pessoal de gestão por vezes muda para o chinês em momentos cruciais.
Em resposta às nossas perguntas, a empresa enfatiza que a língua oficial de trabalho na Europa é o inglês e que, de acordo com as regras internas da empresa, as reuniões entre colegas de diferentes países devem ser realizadas em inglês. No entanto, várias das nossas fontes reclamaram que os conhecimentos de inglês dos expatriados são às vezes fracos.
Uma “pequena embaixada chinesa” em Dusseldórfia
Uma fonte compara a sede europeia da Huawei em Dusseldórfia a uma “pequena embaixada chinesa” onde os funcionários chineses construíram o seu próprio mundo. Ex-funcionários afirmam que as áreas de responsabilidade muitas vezes são definidas de forma que haja pouco contacto entre funcionários da China e de outros lugares. Chineses e não-chineses na Huawei estão num mundo à parte, mesmo fora do trabalho.
Os funcionários europeus raramente descobrem o que realmente está a acontecer na empresa durante o dia de trabalho, diz um ex-funcionário alemão. No entanto, os colegas chineses ocasionalmente perguntam à noite se querem jantar juntos. “Depois de algumas cervejas, descobre-se o que está a acontecer na empresa e o que não está”. Mesmo assim, muitos funcionários ocidentais não quiseram envolver-se e preferem ir para casa.
A sindicalista Ulrike Saaber do maior sindicato industrial da Europa, o IG Metall, estabeleceu contactos com vários ex-trabalhadores da Huawei. Ela descreve-nos o mundo estreito em que os expatriados chineses se movem. “Os chineses que têm raízes e família na China, que só vêm aqui para trabalhar, estão totalmente isolados”.
Segundo Saaber, os expatriados chineses têm pouco conhecimento das leis alemãs e, portanto, dificilmente tentam reivindicá-las para si. “É comum essas pessoas serem reunidas no seu tempo livre por representantes dos seus empregadores”. Há reuniões informais, diz, em que os expatriados são “orientados” segundo as directrizes da empresa. Após um pedido, a Huawei diz que as actividades de lazer conjuntas são organizadas de forma independente por colegas interessados.
Domínio das “tartarugas marinhas”
Ano após ano, a Huawei envia jovens chineses para o exterior. Na China, o pessoal destinado a ganhar as esporas fora de casa é denominado de “tartarugas marinhas”. O seu perfil típico: jovem, homem, bem-educado. As nossas fontes indicam que há uma hierarquia clara na operação europeia da Huawei. As “tartarugas marinhas” dominam claramente.
Os juniores estão sob pressão: as duras condições de trabalho e o controlo constante da empresa fazem parte do dia a dia, promovendo a “cultura do lobo” que o chefe da empresa Ren gosta de invocar.
Uma dessas “tartarugas marinhas” é Joe. Há cerca de cinco anos, a Huawei mandou-o para a Suíça. Ele apaixonou-se por uma europeia, ela ficou grávida. Isso é o que Joe relata numa conversa conjunta com o nosso parceiro de media Republik.
Durante muito tempo, conta Joe, ele tentou manter a namorada em segredo, mas o seu chefe descobriu. Um dia, o homem convida-o para jantar. Após Joe e ele beberem algumas cervejas, o superior faz a pergunta: está a planear casar-se com a mulher?
A empresa quer transferir Joe, da Suíça. Mas Joe resiste, então a empresa ameaça-o com a demissão. De acordo com Joe, ele teme pela sua segurança. Em meados de 2018, ele grava secretamente o vídeo de uma conversa com o gestor de recursos humanos (RH). Ao fazer a gravação, que a netzpolitik.org e os nossos parceiros viram, Joe espera provar como a Huawei lida com funcionários que desejam um futuro fora da China.
No site da empresa, a Huawei promete promover um ambiente agradável que inspira um bom equilíbrio entre trabalho e vida pessoal.
No vídeo, pode-se ouvir Joe a dizer: “a minha esposa vai dar à luz o nosso bebé, pelo que provavelmente vou ficar por aqui”. Mas o gestor de RH insiste para Joe concordar com uma transferência. “A empresa tem o direito de decidir onde você trabalha e você deve seguir as nossas instruções”. Joe recusa. Ele deixa a empresa na Primavera de 2019.
Um documento interno com o pesado título “Regulamento de Gestão de Atribuição e Mobilidade” demonstra como a Huawei também determinou partes da vida privada dos seus funcionários na Europa Ocidental. “Aqueles que obtiveram residência num país da UE ou cujos cônjuges são residentes permanentes na UE e aqueles que se candidataram voluntariamente a residência permanente na UE devem deixar a Europa o mais rápido possível”, escreve a empresa em chinês no documento. “Se não seguirem a ordem, a empresa terminará com o seu contrato de trabalho”.
Quando questionada, a Huawei confirma que, em princípio, tais regulamentos internos existem. Um porta-voz afirma que a empresa não tem opinião sobre a vida privada dos seus funcionários. No entanto, os expatriados sabiam com antecedência das condições da sua carreira no exterior. Se houver conflitos entre estas e a vida privada do funcionário, ele “deve cumprir a política de designação internacional da Huawei e o contrato de nomeação internacional assinado pelo funcionário”.
Dias depois, um porta-voz informou-nos que o regulamento das autorizações de residência deixou de ser válido – porém, quando questionado, não quis dizer desde quando.
“Por favor, não diga a ninguém que estou a aprender alemão”
A consequência da dura política corporativa é aparentemente um clima de medo. Segundo as nossas fontes de Dusseldórfia, a desconfiança começa logo quando os expatriados adquirem conhecimento das línguas locais. “Por favor, não diga a ninguém que estou a aprender alemão”, teria dito um funcionário chinês a um ex-colega que falou connosco.
Em Espanha, um caso foi levado a tribunal em 2018 que mostra como a Huawei aparentemente quer ter uma palavra a dizer no planeamento familiar dos seus funcionários. A queixosa foi uma mulher com o pseudónimo de Ana. Ela acusa a empresa de discriminação sexista. Ana é chinesa, uma expatriada. Durante quase uma década, trabalhou numa posição de topo no departamento financeiro do grupo. A Huawei mandou-a para a Espanha, onde ela se casou com um local.
Quando a mulher quer ter um filho, começa o problema. Por duas vezes ela sofre um aborto espontâneo, das duas vezes ela liga depois a dizer que está doente. A Huawei afirma que o desempenho de Ana no trabalho diminuiu e restringe o seu bónus anual, de acordo com documentos judiciais. Quando ela começou um tratamento de fertilidade e diz que está doente novamente, a empresa despede-a.
Ana processa a empresa e ganha. O tribunal decide que o despedimento não foi legal. Um porta-voz da Huawei disse-nos que o judiciário espanhol nunca decidiu que o despedimento foi causado por discriminação contra uma mulher grávida.
No entanto, numa petição escrita ao tribunal, o advogado de Ana faz sérias acusações contra a Huawei: “Esta decisão de penalizar a funcionária na sua remuneração como consequência das suas licenças devido a abortos sofridos durante a sua gravidez não é uma insinuação mas uma prova directa do facto – consequência, de discriminação em razão do sexo, derivada das suas duas tentativas frustradas de maternidade.
No decorrer do processo, parece surgir um padrão. Um membro do conselho de trabalhadores da subsidiária da Huawei diz ao tribunal que conhece pelo menos cinco mulheres que se tornaram mães e perderam os seus empregos na Huawei. Três delas eram chinesas.
Aqueles que se despedem devem vender as suas acções
Existem razões pelas quais a Huawei pode tratar os seus funcionários assim e, no entanto, quase ninguém se revolta. Uma é a forma como a empresa paga aos seus funcionários chineses.
Depois de trabalhar para a Huawei durante algum tempo, eles recebem certificados de acções da empresa, que formalmente pertence em 99% ao sindicato da Huawei. As acções são usadas para dar aos funcionários uma parte dos lucros. Segundo a empresa, isso é feito para motivá-los. Para eles, o modelo parece lucrativo, mas apenas enquanto os seus planos estiverem alinhados aos da Huawei.
Na verdade, os funcionários não têm uma participação real na empresa: quem pede a demissão ou é demitido é forçado pela empresa a vender as suas acções de volta. De acordo com um porta-voz da Huawei, isso está de acordo com as “nossas regras estabelecidas há muito tempo, geralmente conhecidas e contratualmente fixadas nesta área”. As únicas excepções são para funcionários com longas carreiras e antigos, que podem manter as suas acções quando se reformarem.
A idade de reforma na China é de 60 anos para os homens e 55 para as mulheres. Na Huawei, no entanto, de acordo com as nossas fontes, é comum encerrar a carreira em meados dos 40 anos. Quando os gestores chineses de longa data atingem essa idade, eles geralmente recebem pelo valor das suas acções na empresa e reformam-se efectivamente.
Assim, se um expatriado decidir não retornar à China, ele não perderá apenas o emprego, mas também essa forma de reforma. “A Huawei é uma empresa, não uma prisão: se você quiser sair, pode sair. Mas essa decisão não é fácil”, diz uma fonte que trabalhou para a sede europeia durante mais de cinco anos, incluindo no departamento de RH.
Princípio de rotação estrito para expatriados
A empresa está determinada a evitar que os expatriados se enraízem fora da China e obtenham direitos de residência em países europeus, disse uma fonte que trabalhou para a empresa por vários anos. “O clima interno da empresa é que se você se casar com uma pessoa local e obtiver direitos de cidadania, isso é visto como uma traição”, disse um ex-funcionário em Londres ao nosso parceiro de media The Daily Telegraph.
Um método que a empresa usa para garantir a lealdade dos funcionários chineses é o princípio da rotação estrita. Nenhum expatriado pode permanecer no mesmo país fora da China por mais de cinco anos. Várias fontes afirmam que a empresa deseja impedir que os funcionários chineses desenvolvam laços estreitos com o país anfitrião.
Aparentemente, a Huawei recusa-se categoricamente a comprometer isso. “Após o término de uma comissão de cinco anos contínuos num país, os expatriados que não estão interagindo com os clientes serão re-alocados independentemente de todos os factores”, afirmam as directrizes da Huawei para a Europa Ocidental.
No documento interno, a empresa deixa claro do que provavelmente trata a regra: controlo. “Este regulamento é, assim, estabelecido para garantir que os expatriados da China cumprem os acordos da Empresa”.
Para o grupo, “o princípio da rotação é importante e essencial em muitos níveis diferentes”, disse um porta-voz da Huawei. A mudança constante de local permite que a organização permaneça flexível e os funcionários possam ganhar experiência em diferentes funções e países.
Veteranos da indústria de telecomunicações procurados
Há anos que a Huawei é suspeita de espionagem no Ocidente. Grã-Bretanha, Suécia, Austrália e outros países proibiram a instalação de componentes da Huawei nas suas redes 5G. Nos EUA, a empresa está praticamente excluída do mercado. Em Dezembro, o Welt am Sonntag noticiou que um gestor pediu a funcionários na Alemanha que explorassem e copiassem o software de um concorrente. No entanto, a empresa negou a acusação. As acusações contra a Huawei de ajudar o Estado chinês com espionagem não foram comprovadas até agora. Mas não há dúvida de que a empresa desempenha um papel fundamental na procura da China pela soberania e supremacia tecnológica.
O livro “The Management Transformation of Huawei” conta a história do grupo. Nos seus esforços para ganhar uma posição fora da China, não foi recebido de braços abertos. Em resposta, teve que contratar funcionários locais nos países anfitriões, além de expatriados, escrevem Wen Li, Xiaoran Chan e Bin Guo.
Na Alemanha, de acordo com esta investigação, a Huawei gosta de contratar veteranos da indústria de telecomunicações que são atraídos pelos salários da empresa chinesa. Na sua sede europeia, reúne uma equipa experiente.
“Alguns anos na Huawei não prejudicam ninguém que queira trabalhar neste sector porque realmente se pode aprender muito”, disse um ex-gestor alemão que saiu em 2019. Naquele ano, diz, a Huawei era o “maior gorila de todo o mercado”. Outra pessoa que trabalhou para a empresa em Dusseldórfia também diz: “Não me arrependo do tempo que passei na Huawei, aprendi muito”.
A Huawei parece ter ex-funcionários de concorrentes em elevada conta. Isso é ilustrado por documentos internos que a netzpolitik.org e os seus parceiros viram. Nos formulários de RH, a empresa regista, entre outras coisas, a experiência de trabalho dos seus funcionários. Uma linha é reservada para os concorrentes, como a Cisco, a Ericsson, a ZTE. A próxima linha é para experiência com potenciais clientes, como a T-Mobile e a Telefonica.
As subsidiárias da Huawei repassam os dados pessoais dos seus funcionários alemães para a sede na China e uma filial na Malásia, que se tornou conhecida no ano passado num processo judicial. Conforme relatado pela primeira vez pelo WirtschaftsWoche, o tribunal concedeu uma indemnização a um funcionário da Huawei porque a empresa se recusou a fornecer informações sobre os dados que havia recolhido sobre ele e o que lhes tinha feito.
Quase nenhum funcionário com mais de 50 anos trabalha na Huawei
A Huawei exige disciplina e lealdade aos seus gestores europeus, assim como aos seus expatriados. Mas a lealdade que a empresa exige é apenas parcialmente satisfeita por ela mesma, especialmente para com os funcionários europeus mais velhos.
Conversámos com vários ex-funcionários que foram demitidos da empresa. Os seus relatos são semelhantes: “Fiz sempre tudo exactamente” como era pedido, diz uma das nossas fontes. No entanto, a Huawei demitiu-o após vários anos de serviço leal. O ex-funcionário não quer ter o seu nome na Internet, para evitar problemas com a empresa, mas afirma que o único crime foi a idade.
A Huawei parece ter orgulho da sua força de trabalho jovem. De 194 mil funcionários em todo o mundo em 2019, apenas 2% têm mais de 50 anos, afirma a empresa no seu site.
A Huawei não gosta quando alguém é empregado da empresa após o 60º aniversário, de acordo com várias das nossas fontes. Segundo elas, se os funcionários mais velhos não saírem voluntariamente, a Huawei recorre à pressão.
Não podemos escrever detalhes de vários desses casos, porque podem permitir que conclusões sejam tiradas sobre a identidade das pessoas envolvidas. Isso poderia expô-los a retaliação legal por parte da empresa. De acordo com as nossas fontes, a Huawei não tem escrúpulos na escolha de meios para se livrar de trabalhadores em idade avançada.
Na Alemanha, vários casos acabaram nos tribunais. Nesses casos, a Huawei demitiu trabalhadores com cerca de 50 anos ou mais sem um motivo óbvio. Alguns casos já foram encerrados há muito tempo e a Huawei pagou grandes quantias em compensação. Mas a empresa parece aceitar problemas legais para se livrar de funcionários desagradáveis após anos de bons serviços.
Um ex-gestor alemão que trabalhou para a sede europeia durante quase dez anos diz que ouviu falar de demissões que não foram formalmente correctas porque, por exemplo, não houve nenhum aviso prévio. “Isso é então resolvido com dinheiro – a empresa não se importa com isso. O principal é que o problema seja resolvido”.
A Huawei provavelmente prefere que os afectados saiam por sua conta. As tácticas da empresa incluem dar-lhes tarefas sem sentido ou nenhuma tarefa, bem como transferi-los para outros locais de trabalho, às vezes até mesmo para outros locais da empresa. Isso é feito para atrapalhar o dia a dia das pessoas afectadas e dar-lhes a sensação de que já não são bem-vindas na Huawei, interpreta uma das pessoas afectadas. Alguns falam de assédio. A Huawei declarou-nos que não recorre a nenhuma dessas medidas.
Também são feitas acusações noutro país europeu onde a empresa tem negócios. Um tribunal do trabalho em Madrid concluiu em Novembro de 2020 que a Huawei demitiu cinco dos seus funcionários espanhóis de meia-idade sem justa causa. O juiz decidiu que a Huawei os tinha discriminado por causa da sua idade.
O tribunal concedeu às vítimas uma indemnização de 20 mil euros a cada uma. De acordo com o tribunal, um discurso do fundador Ren Zhengfei supostamente mostra que tais demissões são uma política da empresa, já que funcionários com mais de 50 e mais de 60 anos custam à empresa milhões de euros em despesas adicionais. Um porta-voz alemão insiste que a declaração de Ren foi retirada de contexto: ele queria realmente encorajar os funcionários mais velhos.
De acordo com o porta-voz, a Huawei “rejeita rigorosamente” a acusação de discriminação por idade.
O medo de um conselho de trabalhadores
O tratamento dispensado pela Huawei aos seus funcionários também causa frustração entre os sindicatos. As tentativas de estabelecer um conselho de trabalhadores na sede europeia da Huawei têm sido infrutíferas até agora, diz a sindicalista Ulrike Saaber.
Um porta-voz da empresa referiu que a Huawei respeita a lei laboral alemã [“Betriebsverfassungsgesetz” ou lei de Constituição de Obras] e nada fez para impedir a formação de um conselho de trabalhadores. “A iniciativa de estabelecer um conselho de trabalhadores é dos funcionários, não da empresa”.
De acordo com Saaber, o sindicato tentou várias vezes entrar em contacto com os funcionários, mas os trabalhadores chineses esquivam-se “porque têm medo”. Sem funcionários dispostos a arriscar, o sindicato está a lutar uma batalha perdida. “Isso prejudica a Lei, que na verdade estipula que um conselho de trabalhadores deve ser formado se houver cinco ou mais funcionários”, diz.
Apenas numa das subsidiárias alemãs da Huawei os trabalhadores estão autorizados a nomear os seus próprios representantes. A Huawei ficou com várias centenas de funcionários da Ericsson em 2016, a maioria deles membros de sindicatos. Após meses de negociações e ameaças de greves dos trabalhadores, a Huawei cedeu e a Huawei Technologies Service GmbH teve que aceitar a negociação colectiva do sindicato e um conselho de trabalhadores.
Mas mesmo isso pouco faz para mudar as relações de poder na subsidiária, especula Saaber. “Pessoalmente, só tive contacto com os representantes alemães na Huawei TS, embora estivesse claro que atrás de cada director administrativo alemão ou gestor de RH havia uma figura de espelho chinês”.
As estruturas são estritamente hierárquicas, referiu. “Os responsáveis alemães de gestão têm pouco a dizer e precisam sempre de se coordenar com a China. Na verdade, não têm permissão para decidir nada por conta própria”.
As condições na Huawei não são um problema apenas para os trabalhadores da empresa, mas também para os seus concorrentes. “Se os direitos dos trabalhadores não forem respeitados – seja em termos de horas de trabalho ou remuneração -, essas empresas podem oferecer mais barato. Eles podem operar 24 horas por dia, sem problemas, e assim distorcer a concorrência”.
O Ministério Federal do Trabalho e Assuntos Sociais, sob a liderança de Hubertus Heil (SPD), não quis comentar o caso da Huawei quando questionado pela netzpolitik.org. Um porta-voz afirmou que não comenta casos individuais.
“Ficar em segundo não é uma opção”
A própria Huawei assume a posição de que a única maneira de obter oportunidades é através do trabalho árduo, observou a Harvard Business Review em 2015. Ela descreveu a cultura da empresa como “a chave para o sucesso“. Para alguns funcionários, no entanto, é mais um fardo, como mostra esta investigação. A pressão para ter sucesso dentro da empresa é enorme.
“Se não vender nada, pode esperar ser despromovido”, diz uma fonte que trabalhou muito tempo na sede europeia. Para a empresa, é irrelevante se o sucesso não se materializa por causa do próprio desempenho ou por causa de condições externas sobre as quais os funcionários não têm influência.
Outra pessoa que trabalha na empresa há mais de cinco anos resume a filosofia de gestão da seguinte maneira: “Ficar em segundo não é uma opção para a Huawei”.
A cultura empresarial rígida e “lupina” da empresa faz parte do seu folclore corporativo e, ao mesmo tempo, da vida quotidiana. Os novos funcionários na sede da empresa em Shenzhen precisam de passar por um campo de treino de duas semanas, revelou o Washington Post. Os seus módulos incluem treinos diários às cinco horas da manhã e cursos que na verdade têm o nome de “lavagem cerebral”.
Quão profundamente o pensamento militar está enraizado na empresa também é expresso numa caligrafia emoldurada que, de acordo com o New York Times, está pendurada na parede da sede da empresa. Na escrita chinesa, diz: “O sacrifício é a maior causa de um soldado. A vitória é a maior contribuição de um soldado”.
Erros são denunciados internamente
As nossas fontes concordam que a Huawei pune regularmente os seus funcionários chineses pelas suas alegadas falhas, muitas vezes na frente dos olhos ou ouvidos de colegas – isso também acontece na sede em Dusseldórfia. Em listas de e-mail internas, a empresa permite às vezes que todos saibam quem, na opinião da Huawei, não se comportou adequadamente e quais as sanções que lhe foram impostas. De acordo com as nossas fontes, a empresa responsabiliza os seus gestores pelos erros dos indivíduos. Dentro do grupo, eles são tratados como pais dos seus funcionários, os seus filhos.
A empresa hospeda frequentemente o que os ex-funcionários chamam de “crítica e autocrítica”, ao estilo de um ritual comunista no espírito da Revolução Cultural de Mao. Um gestor chinês, por exemplo, teve que admitir a falha numa conferência telefónica após o fracasso de um processo de licitação, contou-nos uma fonte não-chinesa, que afirma ter participado da mesma. Todos os presentes foram convidados a criticar o homem. A nossa fonte disse que eles estavam muito desconfortáveis. Pouco depois, a Huawei mandou o gestor de Dusseldórfia regressar para a China.
A auto-reflexão é “um princípio importante da nossa cultura corporativa” e serviu para melhorar a empresa e os seus produtos e serviços, afirma a Huawei. Os gestores são incentivados a discutir a situação actual em reuniões de equipa e a explorar “espaço para melhorias”.
Reclamações sobre o horário de trabalho na Huawei
Quando se trata da jornada de trabalho, a empresa de tecnologia também segue um curso bastante incomum na Europa. A frequência estende-se frequentemente para lá do horário de trabalho básico, em sintonia com o chamado princípio 9-9-6 para os funcionários na China. O princípio refere-se à sugestão da presença dos funcionários no escritório das nove da manhã às nove da noite, seis dias por semana. Nos primeiros anos, a Huawei chegou a distribuir cobertores e colchões para novos funcionários, de acordo com a biografia quase oficial da empresa “The Huawei Story”.
Em Dusseldórfia, um horário de trabalho das 9h00 às 18h00 é a regra, pelo menos no papel mas, de acordo com ex-funcionários, a Huawei exige muito mais horas dos funcionários de alguns departamentos. Ex-funcionários relatam reuniões na sede europeia que estão marcadas para as 22h00 e de escritórios que estão a funcionar mesmo aos domingos. Os funcionários chineses por vezes dormiam nos seus escritórios, diz um ex-funcionário.
Isto dificilmente é compatível com a legislação laboral alemã. Durante anos, os trabalhadores da unidade de Dusseldórfia só podiam registar a sua entrada num sistema de registo de horas, relatam as nossas fontes, porque a empresa não permitia registos do fim dos dias de trabalho. Funcionários não chineses revoltaram-se e, desde então, ficaram efectivamente isentos dessa regra. Os expatriados, no entanto, não têm um registo adequado das suas horas de trabalho, de acordo com as nossas fontes.
Um porta-voz da empresa insistiu que o horário de trabalho não é registado, mas apenas a comparência dos funcionários. Ao mesmo tempo, admite que houve, de facto, reclamações sobre o registo de presenças na sede europeia. A autoridade competente também confirma que foram recebidas reclamações ao abrigo da legislação laboral. O Welt am Sonntag revelou primeiro essas queixas. Desde 2018, a Huawei foi “inspeccionada quanto à conformidade com os regulamentos de saúde e segurança ocupacional, em particular os regulamentos da Lei de Horas de Trabalho”, informa o governo distrital de Dusseldórfia.
A Huawei afirma que está em conformidade com a legislação laboral europeia. Os funcionários estão autorizados a trabalhar após as 20h00 “a título voluntário”, desde que não excedam a carga horária máxima de dez horas por dia. “Não é o caso de os funcionários regularmente passarem a noite no escritório“, disse um porta-voz da empresa.
Imagem e realidade
A sinóloga Mareike Ohlberg, que trabalha para o “think tank” German Marshall Fund, vê a Huawei em apuros. O mais importante para a empresa ainda é o mercado chinês, disse-nos. Portanto, tem de enfatizar a sua lealdade ao Partido Comunista. Para o mundo exterior, no entanto, a Huawei tenta apresentar-se como uma empresa internacional moderna. “Isso acontece principalmente na retórica e não na prática”.
Ohlberg aconselha a aplicação do mesmo padrão à Huawei a outras empresas de tecnologia como a Google ou a Apple. Ela diz que, só porque uma empresa é chinesa, não lhe deve ser permitido tratar mal os seus funcionários. Se estiver activa no mercado alemão ou noutros países ocidentais, também deve seguir os padrões éticos correspondentes.
“Em termos de direitos que se têm como funcionário, muitas vezes está-se muito pior na China do que aqui”, diz Ohlberg. “Quando os funcionários são contratados localmente aqui, as culturas de trabalho e as diferentes formas de lidar colidem”. Na sua opinião, no entanto, há pouco interesse da Huawei em mudar a cultura da empresa a longo prazo.
“Os heróis são forjados, não nascem”
A ilustração de uma brochura que a empresa distribui aos seus funcionários diz muito sobre como os parece ver. Como se os seres humanos fossem matéria-prima que pode ser transformada numa fábrica no soldado perfeito. Uma foto mostra um avião de combate russo da Segunda Guerra Mundial que, no entanto, continuou a voar, como a Huawei aponta no texto. A legenda diz: “Os heróis são forjados, não nascem”.
Obviamente, a empresa está a tentar inculcar aos seus funcionários essa retórica de gestão impetuosa. Ex-funcionários da Europa com quem conversámos acharam isso estranho. Apesar disso, é aparentemente praticado na empresa. A Huawei oferece uma atmosfera de alta pressão, mas pouco apoio ou “feedback” positivo, dizem as nossas fontes.
Os gestores levantariam as suas vozes com os funcionários chineses, mesmo pela menor má conduta. Segundo ex-funcionários, a culpa é do sistema de gestão. Nesse sistema, os gestores costumavam ir e voltar entre departamentos bem diferentes. Várias fontes falam de chefes que são tecnicamente bem informados mas que, em última análise, carecem de capacidades pessoais e experiência de liderança. “É o covil de um ‘nerd’”, diz um funcionário alemão de longa data que desde então deixou a Huawei sem problemas.
A pedido, a empresa responde que o tema com o avião de combate “não tem nada específico a ver com o trabalho diário na Huawei”. Mas o gráfico também pode ser visto num e-mail obtido pela netzpolitik.org e seus parceiros. O departamento de RH da sede europeia enviou-o aos funcionários por uma lista de distribuição em Agosto de 2019.
O e-mail contém um discurso supostamente proferido por Ren Zhengfei numa cerimónia de juramento para funcionários. De acordo com o discurso, o fundador disse que a Huawei precisava melhorar as capacidades das suas “equipas de ogivas” que estavam mais próximas dos clientes. Ele falou sobre um “som de artilharia” que os funcionários em campo podiam ouvir. Eles deviam formar “exércitos de campo regionais”.
Um porta-voz da Huawei disse que não consegue reconhecer nenhum padrão geralmente belicoso na retórica corporativa.
Rommel como inspiração
No entanto, as metáforas militares estão profundamente enraizadas no DNA do grupo. Durante quase uma década, Ren Zhengfei trabalhou como engenheiro para o Exército de Libertação do Povo Chinês. Quando fundou a Huawei em 1987, a empresa fornecia inicialmente os militares.
Mesmo na vida quotidiana, de acordo com as nossas fontes, os executivos da Huawei gostam de falar sobre “generais” e supostas “batalhas” numa “frente de batalha”. Num e-mail para funcionários na sede europeia, a Huawei teria referido pelo menos uma vez o general Erwin Rommel da Wehrmacht como fonte de inspiração. Até recentemente, havia também uma entrada em chinês no site da Huawei elogiando Rommel como um comandante “invencível” no Norte da África.
“Linguagem de vitória” é o que um ex-funcionário chama de linguagem marcial. Aparentemente, alguns funcionários não-chineses acharam isso altamente irritante. Um porta-voz da empresa afirma que, por uma questão de princípio, não há referência positiva à Alemanha nazi na Huawei.
A retórica belicosa e a questionável figura de referência não só se encaixam na visão do mundo da empresa, mas também são um elemento central do seu pensamento. O fundador da empresa, Ren, vê a competição económica como uma “luta constante pela sobrevivência”, escreve Eric Flamholtz, professor emérito de administração da Universidade da Califórnia, que estudou a Huawei. Consequentemente, Ren vê a cultura corporativa como a “arma definitiva”.
* Texto de Daniel Laufer e Alexander Fanta, publicado na netzpolitik.org. Reproduzido sob licença (CC BY-NC-SA 4.0). Fotos: Huawei.