As redes sociais ajudaram Donald Trump a ser presidente dos EUA, acobardaram-se com ele após os resultados finais das recentes eleições e tentaram silenciá-lo demasiado tarde mas nada disto significa qualquer atentado à liberdade de expressão.

O poder dos media sociais só ocorre se não existir qualquer plataforma concorrente onde essa liberdade de expressão se possa expressar. Daí o exagero de quem defende que o presidente dos EUA está a ser atingido na sua liberdade de bem dizer o que lhe apetece apenas porque o Twitter não lhe dá espaço.

Na realidade, esta rede social era o ponto de partida de um círculo viciado. “O Twitter deu-lhe um meio singular de se expressar como é, sem ser filtrado pelas normas da presidência”, apontou o New York Times (NYT).

“Ele via o seu próprio ‘feed’ do Twitter, procurando as respostas para os novos tópicos serem descartados. Ele estudou as listas de tendências do Twitter como sinais para onde o discurso estava a ir”. E “a televisão tornou-se o meio pelo qual ele podia assistir aos efeitos dos seus tweets”.

Os seus assessores na Casa Branca revelaram como “ele adorava tweetar e depois assistir nos canais de notícias a cabo aos títulos em rodapé a mudar rapidamente em resposta” ao que ele emitia. “Para um septuagenário cujos aliados e assessores mais próximos costumam referir o desenvolvimento emocional de um pré-adolescente e para quem a atenção foi um narcótico, a gratificação instantânea dos seus tweets era difícil de igualar”.

Estas mensagens não filtradas conseguiam um outro objectivo de chegar ao seu público fiel e de o manipular. Nestes últimos dias, isso foi notório perante a escassez de apoios para impedir a posse de Biden. “Alguns dos mais agressivos fiéis e defensores do presidente Donald Trump são agora atacados por extremistas pela sua suposta falta de pureza – incluindo o vice-presidente Mike Pence, o líder da maioria no Senado Mitch McConnell, a senadora Lindsey Graham e o ex-procurador-geral William Barr. E os fanáticos que eles capacitaram e encorajaram estão agora a acusá-los de não fazer o suficiente para apoiar o Querido Líder”.

O exemplo mais extremo ocorreu com o vice-presidente a 6 de Janeiro, durante o processo do Congresso certificar a vitória de Biden pelo Colégio Eleitoral, com Trump a exigir que ele impedisse a certificação.

“Alguns dos extremistas de extrema direita e nacionalistas brancos que apareceram em Washington, D.C. naquele dia acreditavam que Pence estava a falhar a Trump”, e vários grupos gritaram para Pence ser enforcado. Os manifestantes chegaram a construir um palanque no exterior, com uma corda pendurada. Assim, “os mesmos extremistas que esperavam prejudicar a presidente democrata da Câmara, Nancy Pelosi, defenderam também o assassinato de Pence”.

Declínio das notícias com substituto emocional
Os quatro anos de presidência de Trump não foram nesse âmbito uma novidade. Ele usou os seus assessores (como Steve Bannon), os “seus” media (Breitbart ou Fox News), os seus segredos particulares e a sua família para facilitar a obtenção de interesses muito pessoais. Foi um “reality show” que durou quatro anos, re-escreveu a história da política e germinou pequenos seguidores e fracas imitações, tudo assente na mentira tornada evidente para ser negada de imediato.

“A pós-verdade é pré-fascismo, e Trump foi o nosso presidente pós-verdade. Quando desistimos da verdade, concedemos poder àqueles com riqueza e carisma para criar o espectáculo em seu lugar. Sem um acordo sobre alguns factos básicos, os cidadãos não podem formar a sociedade civil que lhes permite defender-se. Se perdermos as instituições que produzem factos pertinentes para nós, tendemos a chafurdar em abstrações e ficções atraentes. A verdade defende-se particularmente mal quando não há muita coisa por aí, e a era de Trump – como a era de Vladimir Putin na Rússia – é uma época do declínio das notícias locais. A media social não é substituto: ela sobrecarrega os hábitos mentais pelos quais procuramos estímulo e conforto emocional, o que significa perder a distinção entre o que parece verdadeiro e o que é realmente verdadeiro”, escreveu o NYT.

“A pós-verdade desgasta o estado de direito e convida a um regime de mito. Nos últimos quatro anos, os estudiosos discutiram a legitimidade e o valor de invocar o fascismo em referência à propaganda Trumpiana. Uma posição confortável tem sido rotular qualquer esforço como uma comparação directa e, em seguida, tratar tais comparações como tabu”.

Por tudo isto, considerar Trump como uma vítima de censura pelas redes sociais é um exagero. Elas “são plataformas privadas com regras de publicação. Sim, os seus padrões parecem ter duas velocidades quando chega a hora de corrigir as pessoas de esquerda” mas “existem outras plataformas onde é possível expressar-se”, sabendo-se que “essas plataformas também têm as suas normas de publicação” e que podem “expulsar quem não respeitar essas regras”.

“Forçar as plataformas de media privada a publicar tudo e nada é em si mesmo uma forma de colectivismo, denunciada por Ayn Rand. Na verdade, porque deviam as pessoas particulares ser forçadas a disseminar ou patrocinar ideias que consideram repugnantes? Como ela disse tão apropriadamente: ‘A liberdade de expressão individual inclui a liberdade de discordar, de não ouvir e não financiar os antagonistas'”.

Uma reduzida democracia
As plataformas sociais assumem-se como sendo não de media mas para o alojamento de conteúdos. Isto funcionou aos olhos da lei norte-americana, para não impedir o crescimento e a facturação das suas empresas, mas noutros continentes pede-se uma clarificação – e os próprios media estão atentos a essa possível perturbação no panorama mediático, notada pela análise da veracidade dos conteúdos de serviços de armazenamento que não são noticiosos. Em contraste, esses serviços diminuem a qualidade na moderação de conteúdos, já de si terceirizada.

Mas eis que a situação com Trump dá a antever como se podem eliminar vozes discordantes de um serviço supostamente apenas de armazenamento de conteúdo. Ao imiscuirem-se nos conteúdos, as plataformas dizem aos reguladores que têm direito a seleccionar as vozes que pretendem albergar. E assim passam do abrigo da legislação tecnológica para a mais contundente e histórica da liberdade de imprensa.

O movimento foi extenso e envolveu várias das maiores empresas do sector tecnológico.

O Twitter eliminou mensagens de Trump a apelar à violência e, após dar de novo acesso à conta @realdonaltrump, suspendeu-a de modo permanente na passada sexta-feira. O Snapchat fez o mesmo.

O Reddit eliminou o subtópico “r/DonaldTrump”, o Twitch desactivou o canal de Trump, enquanto o Shopify encerrou duas lojas online ligadas ao presidente e o Stripe deixou de processar pagamentos para a campanha de Trump.

O TikTok removeu alguns conteúdos e as hashtags #stormthecapitol ou #patriotparty foram controladas, à semelhança do que fez o Pinterest. O YouTube alegou um reforço sobre a desinformação eleitoral.

O Instagram e o Facebook baniram as contas de Trump até à tomada de posse de Biden.

Uma questão sem resposta decorre do momento: porquê agora? “O contexto mudou, claramente. O contexto é que Trump inspirou uma multidão de bandidos a invadir o edifício do Capitólio, e permanecem ameaças legítimas de que os seus seguidores de culto continuarão a causar danos significativos. Certamente algumas pessoas insistiram que esse tipo de violência sempre foi um risco – e foi. Mas, na verdade, não se tinha chegado a esse nível desta maneira”.

O contexto também sugere que elas só agiram quando o Partido Democrata assegurou a maioria no Senado e numa altura em que são conhecidos os nomes que vão integrar o gabinete de Biden na área das TI, com alguns nomes que estão ou estiveram ligados a estas empresas tecnológicas.

Durante anos, elas contorceram-se para adaptar os seus códigos de conduta e normas aos caprichos electrónicos trumpianos, evitando este tipo de confronto.

Albergaram-se nos seus confusos códigos de conduta para permitirem ou eliminarem à sua inteira discrição certos autores e discursos. Agiram dentro de fronteiras como podiam e fora como queriam. O Facebook é exemplar nesse capítulo, com o várias vezes referido genocídio dos Rohingya em Myanmar, em que só agiu após esse massacre.

E, claro, há ainda a questão das dezenas de acusações sobre práticas de anti-concorrência pelas tecnológicas que vão assoberbar os tribunais em vários estados dos EUA.

Como falar sem Parler?
Perante o confronto cada vez mais visível com as redes sociais, Trump já tinha indiciado andar a tentar uma alternativa ou até a lançar uma nova da sua autoria.

Com a vitória de Biden, o número de utilizadores noutras redes cresceu, assim como as teorias de conspiração ou as propostas explícitas de violência.

Isso sucedeu com a Telegram, pensada para activistas pró-democracia mas infiltrada por um “problema nazi” e por extremistas. Criada pelos irmãos russos Pavel e Nikolai Durov em 2013 e operada a partir do Dubai, a Telegram tentou eliminar contas de grupos de extrema-direita mas, recentemente, estes conseguiram re-estabeler as ligações que mantinham noutras plataformas.

Uma outra alternativa foi a Parler, uma rede ocupada por republicanos e reconhecida pelo albergue de posições extremistas. “Muitos dos seguidores do presidente responderam mudando-se para a Parler”, assegura a Electronic Frontier Foundation (EFF).

A Parler foi lançada como uma versão sem moderação de redes como o Facebook ou o Twitter. Surgiu em 2018, dois anos após o seu fundador John Matze encontrar a sua actual esposa, a russa Alina Mukhutdinova, em Las Vegas.

Os serviços da Parler usavam a cloud dos Amazon Web Services (AWS) e a aplicação estava disponível nas lojas da Google para Android e iOS da Apple. Todas “decidiram cortar o serviço não apenas para um indivíduo, mas para uma plataforma inteira“.

“Não podemos fornecer serviços a um cliente que é incapaz de identificar eficazmente e remover conteúdo que encoraja ou incita a violência contra outros”, explicou a Amazon.

A Parler processou os AWS, alegando um tratamento discriminatório perante o Twitter, incluindo esta rede ter conteúdos que os AWS lhe apontam disponibilizar, e por impedir o acesso dos utilizadores ao seu serviço – algo semelhante ao que fez para o WikiLeaks (2010) e o Irão (2019).

O corte no acesso ocorreu após um ataque em que 70 TB de mensagens e imagens de utilizadores do serviço foram divulgadas em público, incluindo informação pessoal.

Em conclusão, segundo a EFF, é “difícil encontrar alternativas ou re-implementar os recursos que a Internet considera como garantidos”.

E depois de Trump?
Na eliminação de contas e serviços de Donald Trump ou da sua campanha, “as plataformas agiram sem qualquer mandado judicial nem legitimidade para censurar a conta” do presidente dos EUA. “É um grande risco democrático de que o nosso país se deve proteger garantindo a liberdade de expressão nas plataformas digitais, tendo apenas como limite as leis da Républica”, escreve-se para França.

“O que o Facebook e o Twitter fizeram ao excluir permanentemente a conta de Donald Trump é chocante e revelador da sua natureza profundamente antidemocrática. Obviamente, o golfista-presidente tem tudo para ser odiado, pelo que poderíamos dizer “bem feito para ele”. Até ao dia em que será a nossa conta ou a do nosso vizinho a ser apagada. A liberdade não é a censura por autoproclamados polícias do bom gosto, é a aplicação da lei. A liberdade é não achar ‘normal’ que uma conta seja excluída sem base legal porque não se gosta do dono dela. Porque quando um grupo de pessoas ilegítimas começa a ‘fazer o bem’ aos outros sem o seu consentimento, isso termina sempre em barbárie”.

Por isso, os conteúdos online devem cumprir a legislação em vigor e não podem ser as empresas privadas de plataformas sociais a abusarem dos “fortes direitos legais de acordo com a lei dos EUA de se recusar a hospedar ou apoiar discursos de que não gostem. Mas essa recusa acarreta riscos diferentes quando um grupo de empresas se reúne para garantir que determinados discursos ou oradores sejam efectivamente desligados”.

Quais as alternativas? A intervenção do Estado nas redes sociais, substituindo as empresas por um estado como faz a China, ou um modelo de plataforma criado de raiz e gerido pelo Estado (de âmbito europeu, como se propõe neste exemplo) mas moderado pelos utilizadores?

Como antecipa o The Guardian, “Trump não é o primeiro demagogo que a América viu e não será o último. Mas o seu poder é amplificado por um ecossistema de informações corrompido criado pelo Google, Facebook e barões dos media como Rupert Murdoch”. E este “ecossistema de desinformação, extremismo, raiva e intolerância não vai desaparecer pela proibição de Trump ou dos seus apoiantes” quando “a força motriz” deste ecossistema é o lucro e empresas como o Facebook e a Google ganham milhões a promovê-lo.

Os decisores políticos devem reconhecer como “esses barões da tecnologia ganham milhões com a venda de bilhetes para o fim da democracia americana, isso continuará a aproximar-se cada vez mais. Ver Trump ser expulso do Facebook pode ser emocionalmente satisfatório e até mesmo prevenir comportamentos perigosos a curto prazo. Mas apenas uma re-estruturação completa de nossa infra-estrutura de comunicação online pode preservar a democracia”.

Neste cenário, como age a Europa? “O discurso de ódio, o incitamento à violência e os processos de radicalização nas redes sociais” serão alvo de “medidas políticas e legislativas” propostas por Portugal para a presidência do Conselho da União Europeia. Para o ministro Augusto Santos Silva, “há um elemento muito importante que liga a questão da democracia à da transição digital que é justamente a necessidade de combater o discurso de ódio, o incitamento à violência, os processos de radicalização que ocorrem nas redes sociais”.

Fotos: Titanas (CC BY-SA 2.0), The White House.