A grande maioria dos primeiros-ministros portugueses em democracia tem uma reduzida formação em ciências e tecnologias. Dos 15 mandatos, nove foram cumpridos por advogados e apenas um não se licenciou na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.

O caso não é único e um recente texto aborda essa questão para França, embora no plano da ecologia, da energia e do ambiente.

“As derivas” registadas nesse país na “chamada ideologia verde, nas decisões sobre as escolhas de produção de electricidade feitas pelos nossos governos, têm duas raízes”, escreve-se em “Les dangers de l’inculture technique de nos gouvernants“: em primeiro, “a flagrante falta de capacitação técnica dos nossos eleitos, obrigados a serem auxiliados, o que os coloca na detestável posição de pedintes perante especialistas”. Por outro lado, “a tentação eleitoralista de satisfazer uma moda de culpabilização do homem perante a natureza, veiculada por grande parte dos media, cujos jornalistas têm geralmente a mesma formação”.

Pode-se contrariar estas afirmações, relevando na escolha dos políticos que “o bom senso é um critério de escolha. Mas qual é a sua utilidade quando o eleito, elevado a dirigente líder, não tem o conhecimento”?

Este escasseia ao nível político em diversas áreas. Pode ser contrariado pela ajuda técnica – tal como sucede com áreas como as pescas ou a agricultura e é para isso que servem os ministros ou os secretários de Estado sectorais.

Algo semelhante se passa com o Covid-19 e, neste caso, é a repetição de erros cometidos há um século – a crença tecnófila de que uns gadgets electrónicos podem salvar o mundo da epidemia.

“Após a pandemia de 1918, a recém-criada Organização da Saúde da Liga das Nações fundou o primeiro grande sistema internacional de informações epidemiológicas que abrangia dois terços do globo. Informações epidemiológicas coordenadas surgiram na década de 1920 porque a Liga aproveitou uma nova tecnologia de comunicação – a telegrafia sem fio. Embora esse sistema tenha desaparecido na obscuridade, ele pode fornecer lições vitais para hoje sobre como a cooperação internacional se pode aglutinar em torno de novas tecnologias e por que a tecnologia sozinha não pode representar uma panaceia”, recorda-se em “The promise and peril of anti-pandemic technology“.

Actualmente, “nenhuma aplicação ou sistema da moda pode ter sucesso sem a vontade política para promulgar directrizes de saúde pública. No caso do Covid-19, as autoridades de saúde pública souberam do surgimento da doença na China semanas e meses após a sua disseminação lá, assim como cientistas e funcionários da saúde pública que usaram a literatura de revistas científicas ou pelos avisos da Organização Mundial de Saúde. “Mas essa riqueza de informações – espalhada pelo mundo através da Internet em velocidades maiores do que os inventores da telegrafia sem fio jamais poderiam ter imaginado – não foi suficiente para evitar a propagação da doença sem que os políticos pudessem e estivessem dispostos a implementar as respostas de saúde pública necessárias”.

Neste caso, era óbvia a necessidade de ter formação ou sensibilidade para as questões científicas. Mas, no topo, é flagrante a escassez dessa visão. Em sentido contrário e quase único, veja-se o caso alemão.

Angela Merkel formou-se em química quântica em 1986, e foi investigadora até 1989. Em diversas vezes, os seus discursos e respostas a questões sobre a pandemia sustentam-se nesse conhecimento científico.

“No meio da crise do coronavírus, até mesmo os seus críticos passaram a apreciar um político que está em terreno seguro a explicar a importância das casas decimais do que a projectar grandes visões do futuro”, recordava o The Guardian.

“A explicação de Merkel sobre a base científica por trás da estratégia de confinamento do seu governo (…) tinha toda a confiança calma que se espera de uma ex-cientista com doutoramento em química quântica que foi co-autora de um artigo sobre a “influência das correlações espaciais na taxa das reacções químicas”.

“Ela sabe que para cada efeito deve haver uma causa e talvez também condições ideais”, disse Lothar de Maiziére, o político que a recomendou para a política. A formação científica de Merkel “tornou-a uma forasteira numa arena política dominada por homens formados em direito, mas também permitiu a sua ascensão”.

Perante uma crise pandémica, a imposição tecnológica ou a emergência da biónica, o impacto da robótica no mercado laboral ou o aquecimento global, o bom senso é escasso para abarcar os novos desafios sociais, éticos, laborais ou até da nova política.

No caso francês, focado nos problemas ecológicos, o autor do texto descortina que 80% dos presidentes, primeiro-ministros e ministros do ambiente são de instituições onde as ciências não têm uma grande preponderância. A formação em ciência política é dominante mas é uma situação “como se as escolas de comércio vivessem ainda no último século”.

E em Portugal?
Após o 25 de Abril de 1974, o país foi liderado pela Junta de Salvação Nacional e por governos provisórios. O primeiro-ministro eleito só tomou posse em 1976, segundo esta cronologia da Wikipedia.

Mário Soares era licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas (Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa) e, depois, em Direito na Faculdade de Direito na mesma universidade (FDUL). Foi mais advogado do que cientista.

Seguiu-se Nobre da Costa, formado em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico (IST), em Lisboa. Um técnico que liderou o governo entre Agosto e Novembro de 1978.

Mota Pinto licenciou-se em Ciências Jurídicas na Universidade de Coimbra e exerceu Direito.

De Agosto de 1979 a Janeiro do ano seguinte, a primeira e única mulher a liderar um governo nacional, Maria de Lourdes Pintasilgo, era licenciada em Engenharia Químico-Industrial, pelo IST.

Seguiu-se Francisco de Sá Carneiro, outro licenciado pela FDUL, que governou o país em 1980. Após a sua morte, o seu lugar foi ocupado durante cerca de um mês por mais um licenciado na FDUL, Diogo Freitas do Amaral.

No início de Janeiro de 1981 até Junho de 1983, o cargo pertenceu a Francisco Pinto Balsemão, mais um licenciado da FDUL.

Seguiram-se Mário Soares e, durante cerca de uma década, Cavaco Silva, diplomado em Contabilidade pelo Instituto Comercial de Lisboa.

Sucedeu-lhe entre 1995 e 2002 António Manuel de Oliveira Guterres, engenheiro electrotécnico do IST, e depois mais dois outros advogados da FDUL, Durão Barroso (2002 a 2004) e Santana Lopes, até 2005.Bacharel em Engenharia Civil pelo Instituto Superior de Engenharia de Coimbra, o novo primeiro-ministro José Sócrates liderou o governo até 2011.

Cedeu o cargo a Passos Coelho, que frequentou matemática na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, a que se seguiu desde 2015 António Costa – ainda mais um licenciado em Direito pela FDUL.

Em resumo, dois líderes governamentais sabiam de Contabilidade e de Matemática, os quatro responsáveis do ramo das engenharias tinham competências em Engenharia Químico-Industrial, Mecânica, Electrotécnica e Civil, e ocorreram nove mandatos de primeiro-ministro com sete advogados da FDUL (Mário Soares foi eleito duas vezes) e um da Universidade de Coimbra.

Foto: Martin Howard (CC BY 2.0)