Durante a primeira vaga do Covid-19, investigadores da Universidade de Oxford desenvolveram um modelo informático que sugeria que se 56% do Reino Unido transferisse e usasse uma “contact-tracing app” (aplicação de rastreamento de contactos), juntamente com outras medidas de controlo, isso poderia acabar com a epidemia no país.

Com a app inglesa disponível apenas desde Setembro, é muito cedo para dizer como está realmente o sistema. Mas mesmo com base noutros países cujas aplicações estão disponíveis há muito mais tempo, ainda há muito poucas provas de que podem fazer uma diferença real na luta contra o Covid-19 – ou de que não podem.

Embora isso não signifique que devamos cancelar totalmente essas aplicações, a falta de provas é uma preocupação, dado o foco e o dinheiro dedicado a essas apps e as decisões políticas tomadas em torno deles. Esse tipo de “solucionismo tecnológico” pode ser uma distracção do desenvolvimento de sistemas comprovados de rastreamento manual de contactos. Na verdade, o Conselho da Europa questionou se, dada a falta de evidências, as promessas feitas sobre essas aplicações “valem os previsíveis riscos sociais e legais”.

Apesar das previsões de que entre os 67,5% e os 85,5% dos potenciais utilizadores de aplicações fariam o seu “download”, as taxas mundiais têm sido baixas, rondando aproximadamente os 20%. Na Alemanha tem estado em torno de 21%, na Itália 14%, na França apenas 3%. Islândia e Singapura, que foi uma das primeiras a lançar uma app, têm as maiores taxas de “download” até ao momento, 40%.

Essas taxas de transferências são importantes porque são precisas muitas outras pessoas para terem a aplicação nos seus telemóveis para aumentar a possibilidade de que, no caso de se contactar alguém com o vírus, o sistema seja capaz de alertar para esse facto.

Em termos gerais, se se tiver 20% da população como utilizadores activos da aplicação, há apenas 4% de chance de entrar em contacto com outro utilizador da app (essa matemática é explicada aqui). Aumente-se a taxa de “downloads” para 40% e haverá 16% de chance de encontrar outro utilizador activo com a app. Isso também pressupõe que os utilizadores têm a mesma app ou diferentes que possam trabalhar juntas.

As apps podem não precisar de elevadas taxas de “download” para ter algum impacto. Um segundo estudo dos investigadores de Oxford sugeriu que um sistema de rastreamento de contactos bem equipado que incluísse notificações digitais e manuais poderia reduzir as infecções entre 4% a 12% e as mortes em 2% a 15% se apenas 15% da população usasse a aplicação.

O Ministério da Saúde de Singapura afirma que, onde costumava levar as equipas de rastreamento de contactos durante quatro dias para identificar e colocar em quarentena um contacto próximo, a aplicação pode permitir fazer isso em dois dias.

Mas, no mundo real, transferir a aplicação não é a mesma coisa que usá-la ou, mais importante, responder a avisos para se isolar se ela informar que se esteve em contacto com uma pessoa infectada. Um estudo comissionado pelo governo do Reino Unido com mais de 30 mil pessoas mostrou que apenas 18% das pessoas concordaram em se isolar quando alguém que trabalhava para o sistema de rastreamento manual de contactos do país ligou e explicou porquê. Os valores de uma mensagem automática nos telemóveis das pessoas serão provavelmente ainda mais baixos.

Falta de confiança
Afinal, porque é que as apps de rastreamento de contactos não tiveram um sucesso mais demonstrável? Em primeiro lugar, parece haver falta de confiança do público na tecnologia e no uso de dados pessoais.

No início do ano, houve muita discussão sobre se as apps deveriam fazer “upload” de dados para uma base de dados central ou armazená-los nos telefones dos utilizadores para preservar a sua privacidade. A maioria dos países acabou por optar pela última opção, embora a França tenha escolhido a primeira, um sistema menos privado (e que revelou uma aceitação muito baixa).

A Inglaterra também experimentou inicialmente o modelo centralizado, mas após muitas críticas e dificuldades relatadas, mudou para o descentralizado. No entanto, o intenso debate público pode ter deixado uma impressão negativa permanente da eficácia e das preocupações inerentes à privacidade das aplicações de rastreamento desenvolvidas pelo governo.

Na verdade, há boas razões para duvidar da eficácia das aplicações. A maioria dos países (com excepção da Islândia) também optou por usar o Bluetooth para registar quando os utilizadores das apps entram em contacto, em vez de usar o GPS para rastrear a sua localização específica, novamente para proteger a privacidade. Mas o Bluetooth tem uma série de pontos fracos que significam que pode registar contactos que nunca aconteceram e perder outros que ocorreram.

Por exemplo, a aplicação pode registar que se entrou em contacto com alguém, mesmo que esteja do outro lado de uma parede. Mas, se alguém tiver o telemóvel no bolso de trás, ele pode não se ligar com outro que esteja na sua frente.

Um estudo, realizado num comboio e que comparou as aplicações italiana, suíça e alemã, concluiu que a tecnologia era pouco fiável, com nada melhor do que “seleccionar aleatoriamente” as pessoas para notificar, independentemente da proximidade. Os alertas falsos resultantes aumentaram provavelmente a confusão pública e a falta de confiança nas aplicações de rastreamento.

Problema de tecnologia
Outro problema é que apenas os proprietários de smartphones podem usar as aplicações. Dado que, no Reino Unido, 61% das pessoas com mais de 65 anos não tem acesso a um dispositivo de Internet móvel, isso significa que o maior grupo de risco tem muito menos probabilidade de beneficiar dessas apps.

Uma solução para este problema pode ser o uso de tecnologia alternativa para registar os contactos das pessoas. Singapura introduziu um “token” que pode transportado num fio, no bolso ou na bolsa e que contém tecnologia para cumprir a mesma função de uma aplicação de rastreamento. A Nova Zelândia também considerou um “Covid card” semelhante para contornar o problema do smartphone.

Em última análise, para que qualquer uma dessas tecnologias tenha efeito, a única prova que temos sugere que ela deve fazer parte de um sistema eficaz de teste e rastreamento que inclui o rastreamento manual de contactos – algo que poucos países conseguiram estabelecer. Uma solução tecnológica nem sempre é a resposta.

* Texto original publicado pela The Conversation. Reproduzido sob licença CC BY 4.0. Fotos: Marco Verch e Jernej Furman (CC BY 2.0).