Julian Assange deve deixar a sua cela na prisão de Belmarsh, em Londres, esta segunda-feira, 7 de Setembro, para se apresentar numa audiência que irá determinar o seu destino. Após um longo período de isolamento, no último dia 25 de Agosto, ele pôde finalmente encontrar a sua companheira, Stella Moris, e ver os seus dois filhos – Gabriel, de 3 anos, e Max, com 1 ano. Após a visita, Moris disse que ele parecia estar a sentir “muita dor”.
A audiência que Assange irá enfrentar nada tem a ver com os motivos da sua prisão na embaixada do Equador em Londres, a 11 de Abril de 2019. Ele foi preso naquele dia por não ter se entregue em 2012 às autoridades britânicas, que o queriam extraditar para a Suécia onde, naquela altura, enfrentava acusações de crimes sexuais que, em Novembro de 2019, foram retiradas. Na verdade, após as autoridades suecas decidirem não processar Assange, a sua liberdade deveria ter sido concedida pelo governo do Reino Unido. Mas isso não aconteceu.
O verdadeiro motivo da prisão nunca foi a acusação que tramitava na Suécia; era o desejo do governo dos Estados Unidos para que ele fosse levado para este país, onde tinha uma série de acusações. A 11 de Abril de 2019, o porta-voz do Ministério do Interior do Reino Unido disse: “Podemos confirmar que Julian Assange foi preso em função de um pedido de extradição provisória vindo dos Estados Unidos da América. Ele é acusado nos Estados Unidos da América por cibercrimes”.
Manning
No dia seguinte à prisão de Assange, a organização Article 19 publicou um comunicado onde dizia que, embora as autoridades do Reino Unido tivessem “originalmente” dito que queriam prender Assange por fugir sob fiança em 2012 devido ao pedido de extradição da Suécia, ficou claro que a prisão se deveu a um pedido do Departamento de Justiça dos EUA. Os EUA queriam prender Assange com uma “acusação federal de conspiração ao concordar desvendar uma password para um computador classificado do governo dos EUA”. Assange foi acusado de ajudar a denunciante [“whistleblower”] Chelsea Manning, em 2010, quando ela entregou ao WikiLeaks – liderado por Assange – um conjunto explosivo de informações confidenciais do governo dos EUA, com provas claras de crimes de guerra. Manning passou sete anos na prisão antes da sua sentença ser comutada pelo ex-presidente dos EUA Barack Obama.
Enquanto Assange estava na embaixada do Equador e, agora, na prisão de Belmarsh, o governo dos EUA tentou criar um caso intrincado contra ele. O Departamento de Justiça indiciou Assange em pelo menos 18 acusações, incluindo a publicação de documentos confidenciais e uma acusação de ter ajudado Manning a “quebrar” uma password e a invadir um computador no Pentágono. Uma das acusações – de 2018 – torna mais nítido o caso contra Assange.
A acusação de que Assange publicou os documentos não é a principal, uma vez que os documentos também foram publicados por uma série de meios de comunicação social, como o New York Times e o Guardian. A principal acusação é que Assange “encorajou activamente Manning a fornecer mais informações e concordou em quebrar uma ‘password hash‘ armazenada em computadores do Departamento de Defesa dos EUA, ligados à Secret Internet Protocol Network (SIPRNet), uma rede do governo dos Estados Unidos usada para documentos classificados e comunicações. Assange é também acusado de conspiração para cometer invasão de computador ao concordar em quebrar essa ‘password hash'”. O problema é que parece que o governo dos Estados Unidos não tem provas de que Assange conspirou com Manning para entrar no sistema dos EUA.
Manning não nega ter invadido o sistema, transferido os ficheiros e tê-los enviado para o WikiLeaks. Após fazer isso, o WikiLeaks, como outros media, publicou-os. Manning teve sete anos de prisão muito difíceis devido a essa distribuição dos materiais. Devido à falta de provas contra Assange, foi pedido a Manning que testemunhasse contra ele perante um grande júri. Ela recusou e foi presa [até Março passado]; as autoridades dos EUA usaram a sua prisão como forma de a obrigar a testemunhar contra Assange.
O que Manning enviou para Assange
O WikiLeaks anunciou em 8 de Janeiro de 2010 ter “vídeos cifrados de ataques à bomba dos EUA contra civis”. O vídeo, posteriormente divulgado com o nome “Collateral Murder”, mostrava em detalhe como, em 12 de Julho de 2007, helicópteros Apache AH-64 dos EUA dispararam munições de 30 milímetros contra um grupo de iraquianos em Nova Bagdade. Entre os mortos, estavam o fotógrafo da agência Reuters, Namir Noor-Eldeen, e o seu motorista Saeed Chmagh. A agência pediu imediatamente informações sobre o assassinato e foi-lhes dada a história oficial de que não havia nenhum vídeo mas a Reuters persistiu, inutilmente.
Em 2009, o repórter do Washington Post, David Finkel, publicou o livro “The Good Soldiers“, baseado no tempo que esteve integrado no batalhão 2-16 do Exército dos EUA. Finkel estava com os soldados dos EUA no bairro de Al-Amin, quando ouviram os disparos dos helicópteros Apache. Para o seu livro, Finkel assistiu ao vídeo (isso é evidente nas páginas 96 a 104)e defende os militares dos EUA, dizendo que “a tripulação do Apache seguiu as regras de combate” e que “todos agiram de forma adequada”. Os soldados, escreveu, eram “bons soldados e tinha chegado a hora do jantar”. Finkel deixou claro que um existia um vídeo, embora o governo dos EUA negasse a sua existência à Reuters.
O vídeo é horrível. Mostra a insensibilidade dos pilotos. As pessoas no terreno não estavam a disparar contra ninguém. Os pilotos dispararam indiscriminadamente. “Olhe para aqueles bastardos mortos”, diz um deles, enquanto outro diz “boa”, após dispararem contra os civis. Uma carrinha pára na carnificina e uma pessoa sai para ajudar os feridos, incluindo Saeed Chmagh. Os pilotos pedem permissão para atirar ao veículo, obtêm permissão rapidamente e disparam. O especialista do Exército, Ethan McCord – do batalhão 2-16 que tinha Finkel incorporado -examinou a cena do solo minutos depois. Em 2010, McCord disse à jornalista Kim Zetter, da Wired, que “nunca antes vi ninguém a ser atingido por uma bala de 30 milímetros. Não parecia real, no sentido de que não se pareciam com seres humanos. Eles foram destruídos”.
Na carrinha, McCord e outros soldados encontraram Sajad Mutashar (de 10 anos) e Doaha Mutashar (5 anos) gravemente feridos; o seu pai, Saleh, que tentou resgatar o motorista em serviço da Reuters, Saeed Chmagh, estava morto no chão. No vídeo, o piloto viu que havia crianças na carrinha. “Bem, é culpa deles trazerem os filhos para uma batalha”, diz insensivelmente.
Robert Gibbs, o secretário de imprensa do presidente Obama, disse em Abril de 2010 que os eventos no vídeo foram “extremamente trágicos”. Mas ele mostrou muito mais. O vídeo revelou ao mundo o verdadeiro carácter da guerra dos EUA no Iraque, que o secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan, considerou de “ilegal“. A divulgação do vídeo por Assange e pelo WikiLeaks embaraçou o governo dos EUA. Todas as suas reivindicações de guerra humanitária não tinham credibilidade.
A campanha para destruir Assange começou nessa altura. O governo dos EUA deixou claro que quer julgar Assange por tudo, até traição. Não há piedade para as pessoas que revelam o lado obscuro do poder dos EUA, como Assange e Edward Snowden. Há uma longa lista de pessoas – como Manning, Jeffrey Sterling, James Hitselberger, John Kiriakou e Reality Winner – que, se vivessem em países visados pelos EUA, seriam chamados de dissidentes. Manning é uma heroína por expor crimes de guerra. Assange, que apenas a ajudou, está a ser perseguido de forma clara.
A 28 de Janeiro de 2007, alguns meses antes de ser morto pelos militares dos EUA, Namir Noor-Eldeen tirou uma foto em Bagdade de um menino com uma bola de futebol debaixo do braço a caminhar em redor de uma poça de sangue. Ao lado do sangue vermelho, estão alguns livros escolares amarrotados. Foi o olhar humano de Noor-Eldeen naquela fotografia, com a criança andando em volta do perigo como se não fosse nada mais do que lixo na rua. Foi isto que a guerra “ilegal” dos EUA fez ao seu país.
Todos estes anos depois, essa guerra continua bem viva num tribunal em Londres, onde Julian Assange – que revelou a verdade desse assassinato – lutará para não ser mais uma vítima de guerra dos EUA no Iraque.
* Texto original de Vijay Prashad publicado na Monthly Review (CC BY-NC-ND 4.0). Fotos: thierry ehrmann e Dafne Cholet (CC BY 2.0) e Francis Mariani (CC BY-NC-ND 2.0)