O trabalho remoto – um anglicismo do que se denomina de teletrabalho – é um tema polarizado entre os que o apreciam e os outros.

O comentador Francisco Louçã integrou-se neste segundo campo, daqueles que o aceitam em casos excepcionais mas não como regra.

Louçã alertou que “está a ser apresentado como um conto de fadas”, que pode levar ao engano por aqueles que acreditam poder ter mais tempo livre ou uma maior disponibilidade para gerir o seu tempo. (Isto até podia ser verdade se os patrões em Portugal funcionassem por projecto e não por horário dispendido).

Para este economista, os trabalhadores enfrentam os problemas de “estar a trabalhar em casa sujeitos a uma hierarquia e a um horário de trabalho que não conseguem controlar”, quando têm de gerir uma situação em que não estão vinculados à empresa. Algumas vão considerar ser desnecessário terem trabalhadores, optando por “empresários em nome individual que eu contrato, a quem não pago Segurança Social”.

Louçã esquece que como o trabalhador não está vinculado a uma empresa, o seu empenho ou as suas competências podem ser transferidas ou partilhadas com outras fontes de rendimento.

Uma outra visão pertence ao ex-sindicalista Manuel Carvalho da Silva que alerta estar “em curso uma discussão sobre o teletrabalho muito suportada por opiniões superficiais, sem reflexão acerca do contexto económico, social e político em que vamos viver, sem suporte em estudo científico e empírico indispensáveis”. Este economista alerta igualmente que “o perigo de se desvalorizar o teletrabalho é real. E ele não pode tornar-se trampolim de transferência de responsabilidades”.

O quadro europeu sobre o teletrabalho data de 2002 “e ainda constitui a principal referência para a regulamentação do trabalho virtual por meio de negociação colectiva e regulamentação estatal”.

Entre outros pontos, este acordo estabelece que “o teletrabalho deve ter um carácter voluntário, para o empresário e para o trabalhador envolvido”, este beneficia “dos mesmos direitos que as condições de emprego dos restantes trabalhadores”, o equipamento e a sua manutenção deve ser assegurado pelo empregador, em geral, “o tempo de trabalho é gerido pelo teletrabalhador no quadro legal”, devendo prevenir-se “o isolamento dos teletrabalhadores da comunidade de trabalho da empresa ou organização”. Em resumo, os “direitos colectivos dos teletrabalhadores devem ser equivalentes aos dos restantes trabalhadores”.

A realidade é que o ambiente laboral em teletrabalho é diferente do presencial. As organizações podem exercer uma maior vigilância tecnológica sobre os teletrabalhadores, ao poderem “monitorizar o paradeiro e o comportamento dos funcionários mais de perto do que nunca, usando ferramentas de vigilância como aplicações móveis, sensores de escritório e algoritmos” que “analisam a vasta quantidade de dados que as pessoas produzem enquanto trabalham”. [act.: Bosses started spying on remote workers. Now they’re fighting back]

Ainda segundo a MIT Sloan Management Review, “mesmo quando não estão no escritório, os funcionários geram um mar de dados através das suas interacções por e-mail, Slack, plataformas de mensagens de texto e instantâneas, videoconferências e chamadas telefónicas”.

O uso da inteligência artificial (IA) facilita a obtenção de “diagnósticos automatizados em tempo real que medem a saúde e o bem-estar das pessoas, os seus níveis de risco actuais e probabilidade de risco no futuro”.

O “problema de trabalhar em casa” apresenta outros obstáculos, alguns dos quais ficaram visíveis com a pandemia. Por exemplo, a intuição de que se trabalha mais horas, se organizam mais reuniões e há mais emails para responder “está agora suportada em dados” concretos.

Uma análise a 3,1 milhões de trabalhadores em 21 mil empresas de 16 áreas metropolitanas nos EUA, Europa e Médio Oriente revelou que o dia laboral aumentou em 48,5 minutos logo após o confinamento, o número de reuniões cresceu 13% e foi enviada uma média de mais 1,4 emails diários aos colegas, segundo um trabalho do National Bureau of Economic Research.

Apesar de cidades como Los Angeles ou Chicago terem regressado aos valores pré-pandemia, o mesmo não sucedeu noutras como Nova Iorque ou na Europa.

A tensão existente relativa ao teletrabalho tem dois pontos nevrálgicos: as vantagens entendidas pelo trabalhador e as asseguradas pelo empregador. Assim, “a mudança para o trabalho remoto tem um grande potencial para a economia dos EUA em geral e benefícios tanto para profissionais como negócios”, constata o relatório “When Work Goes Remote“, revelado em Julho pela Upwork. Esta plataforma para trabalho independente já calculou que um em cada cinco trabalhadores vai trabalhar em casa após a pandemia.

“Em vez de ameaçar o crescimento da produtividade”, o trabalho remoto tem potencial para reduzir os custos de espaço para as empresas e “ajudar a disseminar a produtividade pelos EUA por essencialmente criar o maior mercado laboral do mundo”. Mas, como explicitava Franklin Delano Roosevelt em 1944, “chegámos a uma clara compreensão do facto de que a verdadeira liberdade individual não pode existir sem segurança económica e independência. Pessoas com fome e sem emprego são a matéria-prima de que são feitas as ditaduras”.

É esta tensão constante entre a independência desejada e a necessidade de segurança que começou a ser fortemente abalada como a “economia do biscate” (ou “gig economy“), fortemente identificada com os trabalhadores de plataformas online como a Uber.

Apesar de elogiada como uma nova era para o micro-empreendedorismo (ou economia da paixão ou motivação para as startups ou…), ela disfarçou a precariedade do mercado laboral, já antes vincada desde os trabalhadores temporários ou “freelancers” (ou “recibos verdes”) aos pagos ao dia.

Nos EUA, calcula-se que 50 milhões de pessoas estão inseridos nesta “economia”. E que 94% dos empregos criados entre 2005 e 2015 foi para este “trabalho alternativo”, independente ou temporário – dando razão ao The Wall Street Journal que falava do “The End of Employees” em 1997: “nunca antes os grandes empregadores se esforçaram tanto para transferir partes dos seus negócios para subcontratados. Da Google ao Wal-Mart, a estratégia reduz os custos das empresas e a segurança no emprego de milhões de trabalhadores”.

Dada a dimensão deste mercado de trabalhadores sem empregador directo, naturalmente alguns tentaram unir-se em sindicatos enquanto estes se esforçaram por os cativar para as suas causas. [act.: Uber and Lyft ordered by California judge to classify drivers as employees]

Em resultado disto tudo, já se começa a falar de um “falhanço da economia do biscate“, com uma evolução para um outro modelo acelerado pela pandemia, a “hustle economy” – “um mercado de trabalho online no qual trabalhadores dependentes de plataformas [online] criam e monetizam os seus próprios produtos digitais”. Como na Uber, eles “precisam de uma plataforma para ter sucesso. Mas o seu trabalho é individualizado, autodirigido e no seu próprio horário – um ‘criador’ não pode substituir outro”.

Este modelo está a ser adoptado por “professores desempregados, cozinheiros e dançarinos”, usando o Patreon, Twitch e OnlyFans. Os números recentes destas plataformas são reveladores. O primeiro conseguiu 100 mil novos utilizadores entre Março e Julho, a Etsy teve 115 mil novos vendedores no primeiro trimestre do ano, período em que os cursos online na Teachable obtiveram 14 mil novos criadores.

O modelo foi teorizado no final do século passado por futuristas da tecnologia como Kevin Kelly, antecipando que “as redes sociais e as plataformas de pagamento online abririam uma gama de opções de carreira novas e gratificantes”. Para o teórico organizacional Thomas W. Malone, “as ‘redes electrónicas’ dissolveriam a corporação como a unidade principal da economia e a substituiriam por ‘redes flexíveis e temporárias de indivíduos’ que auto-seleccionam os seus trabalhos”.

O “movimento”, a emergir “ironicamente” numa sociedade em que os envolvidos são “capitalistas”, recorda Karl Marx, para quem apenas os trabalhadores com controlo da produção podiam aproveitar os benefícios espirituais e financeiros do seu trabalho.

Na realidade, porém, este movimento prossegue uma atomização do trabalhador numa concorrência visível ao nível dos estados e das empresas.

No recente trabalho “Economic Competition in the 21st Century“, as principais conclusões apontam como “as empresas competem economicamente, assim como as nações”. Uma “competitividade económica nacional refere-se geralmente à capacidade de aumentar a produtividade e os padrões de vida”, à semelhança do que procura o trabalhador num ambiente competitivo onde tem de salientar-se pelas suas competências endógenas (com capacidade de as “exportar”, para obtenção do “investimento directo”, e assegurar uma “liderança” no seu sector produtivo).

O que toda esta evolução demonstra é que, ao abrigo da pandemia, o teletrabalho poderá vingar não como uma forma de aligeirar as tarefas laborais dos funcionários mas principalmente como uma diminuição de custos para as empresas que o puderem adoptar. Um exemplo para elaborar estes custos: a Google anunciou em Julho que 200 mil dos seus funcionários vão poder teletrabalhar até ao Verão de 2021.

Nesse sentido, três antecipações sobre como será o futuro do trabalho (em termos económicos, laborais e políticos) parecem fazer todo o sentido.

Em primeiro, a revolução da “telepresença” vai afectar companhias aéreas, hotéis ou restaurantes por as pessoas se deslocarem e saírem menos de casa, mas também o sector do vestuário ou dos transportes urbanos.

Como já foi explicado, o “agenciamento” pessoal tenderá a aumentar. “À medida que as pessoas percebem que a sua ligação com o escritório é virtual, mais americanos podem assumir trabalhos paralelos e até mesmo abrir as suas próprias empresas”, nota ainda a The Atlantic. As ferramentas de interligação “podem ser re-aproveitadas para se trabalhar sozinho. Engenheiros ambiciosos, criadores de media, profissionais de marketing ou de relações públicas e outros podem estar mais inclinados a agirem por sua conta, em parte porque” vão compreender como estão sozinhos e podem “monetizar” essa independência. Será “uma nova era de empreendedorismo” mas “sobrecarregada por uma pitada de angústia social-existencial”.

Em terceiro, a deslocação para fora dos centros urbanos não afectará apenas as empresas mas também o trabalhador e a sua família. Este êxodo terá um impacto político, como pode ser visto nos EUA: “em 2016, Hillary Clinton venceu Manhattan e Brooklyn por cerca de um milhão de votos – mais do que as margens de vitória de Donald Trump nos estados da Flórida, Arizona, Geórgia, Carolina do Norte, Michigan, Wisconsin e Pensilvânia combinados”. Assim, os liberais que dominam nas cidades podem conseguir impor-se em locais tradicionalmente mais republicanos.

Em resumo, os trabalhadores vão gastar “mais dinheiro e tempo dentro das suas casas”, ficando mais tempo em comunidades online do que fisicamente com colegas, e podem localizar-se por todo o país.

Foto: Frannie 1 (CC BY-NC 2.0)