A pandemia do Covid-19 transformou praticamente tudo na ampla gama do social, da maneira como nos relacionamos com outras pessoas a como lidamos com a morte.
No início de Março, quando na América Latina se estava apenas a começar a entender o que estava para vir, dissemos que a crise ameaçava deixar clara uma imagem de segregação social que os governos tentam disfarçar com números extremamente frágeis, que mal tentam disfarçar realidades precárias como sendo algum tipo de sucesso. No Chile, um país que luta para impor uma imagem internacional de prosperidade económica, a fome voltou a ser motor de protestos nas ruas, assim como nos anos sombrios da ditadura. No contexto de uma pandemia, a desigualdade torna-se fatal.
Num texto publicado em Março, intitulado “Las desigualdades de producir desde casa“, intuímos que a reconversão forçada de trabalho e do estudo em “teletrabalho” e em “estudo remoto”, a sua dependência da infra-estrutura de telecomunicações, seria uma das áreas em que a desigualdade iria ser vista mais claramente. Foi uma intuição, mas alguns meses depois temos mais informações: um estudo realizado no Chile revela que uma percentagem significativa de pessoas em situação de teletrabalho se sente com stress, principalmente as mulheres. Por sua vez, um estudo da UNESCO indica que mais de metade dos 1,5 mil milhões de estudantes confinados à pandemia não possui um computador para acompanhar remotamente as aulas.
Obviamente, trata-se de um problema complexo e multidimensional, com questões que vão da regulamentação do trabalho em relação ao uso da tecnologia, a outras relativas a políticas habitacionais e à superlotação experimentada por uma percentagem não inferior à população.
Agora, queremos analisar um dos tópicos que compõe o enredo do problema, relacionado às possibilidades de acesso à Internet e como esse problema foi tratado pelos governos, bem como a maneira pela qual os fornecedores de serviços tentaram responder às necessidades impostas pelo novo contexto.
Chile
Estima-se que, no Chile, pouco menos de 90% dos domicílios estejam conectados à Internet. No entanto, de acordo com os últimos valores disponíveis, o número de domicílios ligados apenas por dispositivos móveis está entre os 44% e os 46%. E, como explica a académica Teresa Correa, “agora que somos confrontados a fazer tudo online, percebemos que isso é insuficiente“. Com isso em mente, é importante rever as medidas que foram tomadas no contexto da pandemia.
No Chile, o Governo com um número importante de fornecedores de acceso à Internet (Claro, Entel, GTD, Movistar, VTR, WOM, Mundo Pacífico e CMET) implementaram um “Plan Solidario de Conectividad” que permite manter o acesso a serviços de telefone e de Internet em caso de, por razões de força maior, não se consiga pagar a conta mensual, aainda que de forma limitada.
Apresentado a 1 de Abril, este benefício estaria inicialmente vigente durante 60 dias, mas foi prorrogado por mais 30 dias e pode ser solicitado durante o mês de Junho. Para lhe aceder, deve-se pertencer aos 40% dos lares de menores rendimentos, segundo o Registro Social de Hogares (RSH).
No caso dos clientes com contrato de Internet fixa, o plano contempla uma ligação com uma velocidade máxima de 2 megabits por segundo.
Para quem tem um contrato de ligação móvel, o plano permite usar a Internet com uma velocidade de 256 kilobits/segundo e acesso a algumas redes sociais na modalidade de taxa zero e aos endereços Información Oficial Coronavirus e Aprendo en línea.
Para os que acedem à Internet móvel na modalidade de pré-pago, o plano apenas contempla o envio e recepção de email, o acesso a algumas redes sociais e aos antes referidos sítios Web.
Os fornecedores de acesso à Internet acrescentaram uma série de benefícios adicionais aos seus clientes. Eles variam por operadora mas um elemento que aparece como central é a ampliação da oferta de acesso a serviços Web mediante a modalidade de “taxa zero”.
É o caso da Entel, com o acesso ao WhatsApp, Instagram, Facebook, Facebook Messenger e Twitter aos clientes por pré-pago. A medida foi prorrogada mensalmente desde o início da pandemia e actualmente vale até 30 de Junho.
Algo similar ocorre com a Movistar que, para os clientes com pós-pago, fornece o acesso ao Instagram, Facebook, Facebook Messenger, WhatsApp e Twitter após o plano ter esgotado os gigabits de navegação disponíveis. Para os clientes de pré-pago, estes podem aceder ao WhatsApp e Twitter, até 5 gigabits, após o que a velocidade da ligação diminui. Este benefício foi sucessivamente prorrogado desde o início da pandemia e actualmente está válido até 30 de Junho.
Pela sua parte, a Claro oferece aos clientes de pré-pago acesso livre ao Facebook, Twiter, WhatsApp, Instagram, Facebook Messenger e Claro Music, possibilidade que também foi sendo prorrogada durante a pandemia.
No caso da Wom, a empresa prolongou o acesso ao WhatsApp, Instagram, Snapchat, Facebook e Twitter àqueles clientes de pré-pago que tenham pago a sua conta nos últimos 30 dias.
Sem entrar na discussão relativamente ao que significam estas medidas do ponto de vista da neutralidade da rede, há duas questões que parece importante assinalar. Em primeiro lugar, que tanto as medidas promovidas pelo Governo como a extensão das possibilidades de acesso aos serviços de Internet pela modalidade “taxa zero” são valiosas para ajudar as pessoas a manterem-se informadas e ligadas às pessoas mais próximas, mas não são suficientes para cumprir as necessidades impostas pelo teletrabalho e tele-ensino.
Em segundo, o que chama mais a atenção é a falta de medidas que apontem para a ampliação dos “data caps” [restrições na transmissão de dados] e da velocidade de ligação, que são mais importantes para teletrabalhar e tele-estudar. A Movistar foi a única empresa que anunciou um incremento na velocidade de ligação de Internet fixa, mas apenas para utilizadores de fibra óptica.
Por seu lado, a Claro aumentou em 5 gigabits os “data caps” dos planos “Max Y, M e L” e em 2 gigabits nos planos XS y S. E em Abril, a Wom anunciou 2 gigabits extra para todos os seus utilizadores. Inicialmente, a Entel dava tráfego ilimitado aos clientes dos planos “Empresas y Corporaciones”, mas esse benefício mudou em Junho para tráfego ilimitado nas redes sociais e ferramentas de teletrabalho.
Em pólos opostos: México e Uruguai
Feita a análise ao Chile, era importante ter uma comparação com outras realidades, para ter uma ideia geral relativamente ao modo como o problema está a ser abordado a nível regional. Os casos do México e do Uruguai destacam-se pelo contraste nas medidas adoptadas.
No primeiro caso, o Instituto Federal de Telecomunicaciones acordou com os concessionários dos serviços móveis – AT&T, Telcel e Telefónica – um “plano de emergência”, que permite aos utilizadores de pré-pago aceder, por uma única vez, a um pacote gratuito de chamadas de voz e mensagens SMS, mas não acesso à Internet. Isto quando 84% dos utilizadores dos serviços de comunicações móveis no México são em pré-pago.
Pelo seu lado, IZZI, Megacable, Telmex, Totalplay e Maxcom começaram a oferecer aos seus clientes a opção de migrar temporariamente para um plano de baixo custo. As características são semelhantes às do “Plan Solidario de Conectividad” chileno – acesso à Internet com uma velocidade de até 2Mbps, navegação livre e dados ilimitados com excepção de vídeo e de videojogos – mas com um custo de 100 pesos. O plano iniciou-se em Maio e está em vigor até 30 de Junho.
Como no caso chileno, embora este tipo de medidas possa proporcionar um alívio que permita às pessoas manter contactos e informar-se, não são medidas suficientes para atender às exigências do teletrabalho e tele-estudo que a pandemia impõe, e elas tornam-se mais uma expressão do fosso digital, no qual o exercício de direitos como estudar ou trabalhar é definido pela capacidade de pagar pelo acesso à Internet de uma maneira específica.
No Uruguai, as coisas são um pouco diferentes. O país possui uma empresa estatal de telecomunicações, a Antel, que detém o monopólio da telefonia fixa nacional e ligações à Internet por cabo. Entre as medidas adoptadas pela Antel na pandemia, destaca-se a suspensão dos cortes nos serviços de telecomunicações por falta de pagamento, para utilizadores residenciais e para algumas empresas.
Da mesma forma, a empresa ampliou a quota de dados de navegação para utilizadores dos planos Universal Hogares e Universal Pymes. Ambos os serviços oferecem acesso gratuito com um limite de navegação mensal de 1 gigabit, que durante a pandemia foi expandido para 50 gigabits sem nenhum custo.
Junto a isso, foram eliminados o custo da taxa de conexão aos serviços de telefonia fixa e/ou Internet, transferência de telefonia fixa e/ou Internet e a mudança de diferentes planos de tecnologia para planos de valor igual ou superior.
O interessante das medidas apresentadas pela Antel é que elas estão muito mais próximas daquelas que deveriam ser consideradas um esquema sob o qual o acesso à Internet é concebido como garantia de direitos fundamentais e não como um simples privilégio, na esfera privada e vinculada às capacidades individuais de pagamento ou dívida.
De qualquer forma, o fosso digital exposto pelo Covid-19 abre um debate que certamente transcenderá a pandemia e que, espera-se, nos forçará a repensar os números da conectividade nos nossos países e as políticas públicas construídas em torno deles. Neste momento, no Chile, um projecto de lei que visa garantir o acesso à Internet pelos estudantes está em discussão, embora o seu futuro seja incerto.
Estes dados convidam a uma leitura mais aprofundada sobre o papel que atribuímos à Internet e ao papel que desempenha no campo dos direitos humanos.
* Texto original de Vladimir Garay, republicado da Derechos Digitales (CC BY-SA 3.0 CL). Foto: pfly (CC BY-SA 2.0).