Francis Gurry, director-geral da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), tece algumas reflexões sobre o impacto do Big Data na política da propriedade intelectual (PI).

De que modo a transformação digital estimulada por tecnologias de ponta como a inteligência artificial (IA) vem modificando o panorama global da PI?
Ainda é cedo para termos uma visão clara do impacto da transformação digital no panorama global da PI. Porém, podemos observar que se trata de um processo rápido e profundo, com efeitos significativos na gestão de sistemas e políticas de PI. Na verdade, é relativamente simples identificar o impacto na gestão da PI. De modo geral, trata-se de avaliar os benefícios gerados pela aplicação e pelo uso dessas tecnologias para aumentar a eficiência operacional dos institutos de PI. O mais difícil é saber como essas tecnologias afectarão a política de PI. Os direitos de PI de que desfrutamos actualmente foram instituídos principalmente durante a Revolução Industrial para atender à produção em massa. Uma das questões mais importantes levantadas actualmente é se os direitos de PI existentes proporcionam os incentivos necessários para favorecer a inovação na era digital.
Uma das questões mais importantes levantadas actualmente é se os direitos de PI existentes proporcionam os incentivos necessários para favorecer a inovação na era digital.

O sistema de PI clássico continua a ser pertinente na nova economia baseada em dados?
Por ora, observamos que o sistema de PI clássico está longe de ser obsoleto. As estatísticas mostram um uso sem precedentes do sistema de PI clássico, registando taxas de crescimento que superam amplamente o desempenho económico global. No entanto, devemos atentar para o facto que a tecnologia digital de ponta baseada em dados é claramente a força dominante na produção e na distribuição económica no âmbito da economia digital. Também devemos questionar se as estatísticas revelam um aumento do uso em relação à economia industrial, ou se também se aplicam à economia digital. A eficiência do sistema de PI clássico para contemplar todas as questões advindas das tecnologias baseadas em dados que predominam na economia digital ainda não é clara. Sem sombra de dúvida, essas questões representarão um desafio de monta para os formuladores de políticas de PI.

Existem indícios de que os países começam a adaptar as suas políticas de inovação à economia digital?
Sim. Vários países adotaram estratégias que colocam a IA no centro da sua estratégia económica. Tecnologias digitais avançadas, como a IA, possibilitam o desenvolvimento de produtos e serviços inovadores e úteis, graças ao tratamento de dados. Algumas delas, particularmente a IA, melhoram o desempenho quando têm acesso a volumes maiores de dados. Actualmente, é quase um consenso que a disponibilização de dados é um factor positivo para o desenvolvimento de produtos e serviços úteis e benéficos. Porém, os governos não podem exigir que as empresas partilhem dados confidenciais com concorrentes. O que podem fazer é disponibilizar os dados de órgãos do governo – como os recolhidos por meio da prestação de serviços públicos – e aqueles provenientes de pesquisas financiadas com recursos do Estado para empresas que possam tirar proveito do material. Certos agentes privados que apoiam a ideia de disponibilizar dados para o público, como os cientistas, têm adoptado práticas semelhantes. Subsistem muitas questões políticas complexas em torno dos dados na economia digital.

Quais são as medidas mais importantes a serem tomadas para a criação de um quadro eficiente de políticas de PI em torno dos dados?
Devemos definir práticas apropriadas e legítimas de recolha, armazenamento e uso dos dados. Ou seja, precisamos de identificar as restrições apropriadas à recolha e à utilização posterior dos dados e entender por que tais restrições são necessárias. Embora haja meios excepcionalmente eficazes para a recolha de dados de todos os tipos (por exemplo, voz, texto, imagem, etc.), resta identificar os meios apropriados para a recolha e o uso desses dados.

Quais são os factores a serem considerados para estabelecer possíveis restrições ao uso dos dados?
A privacidade talvez seja o factor que mais tenha recebido atenção nos últimos tempos. O Regulamento Geral de Protecção de Dados (RGPD) da União Europeia decorre dessa preocupação. A Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 12) reconhece a privacidade como um direito humano. Mas, curiosamente, a actual falta de clareza da política de privacidade fez com que algumas empresas a utilizassem como instrumento de competitividade. Algumas delas, por exemplo, afirmam oferecer maior protecção à privacidade que as concorrentes. É de se supor que outras empresas entrem no mercado com ofertas semelhantes, envolvendo restrições de recolha, armazenamento e uso dos dados do cliente.
Outro fator é a segurança, particularmente quando se procura garantir que os dados não sejam disponibilizados ao público, por exemplo, para proteger a privacidade das pessoas ou conservar uma vantagem competitiva. A segurança suscita questionamentos particulares, pois em condições normais o Estado não imporia tais restrições. Em geral, para o Estado, a segurança é, por exemplo, proibir um indivíduo de entrar na propriedade de outro. Estamos a falar aqui de economia física. Hoje, os formuladores de políticas de PI devem decidir como ela se aplica à economia digital. Essas conclusões podem resultar em mais restrições à recolha e ao uso de dados.
Na medida em que os dados são um insumo fundamental para a produção e a distribuição na economia digital, a concentração do poder de mercado e os seus efeitos na concorrência também ocasionarão restrições de recolha, armazenamento e uso de dados. A política de concorrência protege contra os abusos dos agentes económicos com posição dominante em razão do seu poder de mercado. Embora estejam a ser desenvolvidas políticas relacionadas com essa questão, os formuladores de políticas ainda não compreendem o mercado digital em toda a sua dimensão nem qual seria uma conduta anticoncorrencial nesse contexto.
Outra questão importante é a tributação na economia digital. Na economia tradicional, a origem da mercadoria, residência e cidadania são geralmente as bases em que os governos se fundam para se atribuir o direito de tributar. Como podemos aplicar esses conceitos à economia digital, na qual uma plataforma opera numa região do mundo e vende e disponibiliza produtos via Internet com “download” noutra? Como as autoridades fiscais farão para rastrear tais transacções? Os tributos devem ser recolhidos no local da oferta (onde fica a sede da plataforma, por exemplo) ou no país onde a mercadoria é comprada? A quem é atribuída a competência de tributar o valor gerado nessa transacção? A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE) vem trabalhando para esclarecer essas questões.
Naturalmente, a propriedade e, particularmente, a propriedade intelectual, é um factor de extrema importância. No sistema de PI clássico, qualquer dado não público que um agente económico tenha tomado precauções razoáveis para manter confidencial e que se considere ter valor económico pode constituir um segredo comercial. Na economia digital, os segredos comerciais tornaram-se a principal maneira de proteger dados não publicados e que tenham importância económica. Mas o segredo comercial fornece uma protecção adequada aos dados? Ele não é um direito de propriedade no sentido clássico do termo. Trata-se de um direito relacional, ou seja, não se admite a “intrusão” no segredo comercial ou o mau uso deste. Por exemplo, se uma empresa fornecer dados a um subempreiteiro para que sejam usados de maneira específica, o subempreiteiro não poderá fazer uso desses dados para nenhum outro fim. Os formuladores de políticas deverão avaliar se os segredos comerciais tratam ou regulam todas as questões relacionadas com a protecção de dados que possam surgir na economia digital.

Podem surgir novos direitos de propriedade para os dados?
De momento, nada me leva a crer no advento de um novo direito de propriedade de registo para dados. Se um novo direito surgir, será o resultado do posicionamento da sociedade quanto à recolha, ao armazenamento e ao uso ilícitos dos dados. Tudo o que estiver fora dessa esfera será considerado lícito. Uma vez instauradas, as restrições poderão ser consideradas a base de direitos excludentes do que normalmente consideramos propriedade. A título de ilustração, tomemos o código babilónico de Hamurabi, que data de 1754 a.C. Esse conjunto de leis não confere o direito de propriedade de ovelhas, simplesmente estipula que furtar a ovelha de um vizinho é ilegal e passível de punição. Desse modo, quando criamos restrições ao livre fluxo de dados no que diz respeito à recolha, ao armazenamento e ao uso, elas podem, a certa altura, equivaler a um direito de propriedade.

Qual é sua opinião sobre o direito de propriedade atribuído a uma máquina?
Essa questão tem chamado muita atenção actualmente. Para tratá-la, devemos ter em mente que o ponto de partida para desenvolver a política de PI – e, portanto, a política de inovação – é identificar os resultados almejados. Qual é nosso objectivo? Esta questão é fundamental. Se a sociedade considera que dar um direito a uma máquina é a maneira de incentivar a inovação, essa proposta pode ganhar força. Mas como vai esse direito funcionar na sociedade? A certa altura, um ser humano deve auferir rendimentos ou algum outro tipo de benefício desse direito. Além disso, inventores e cientistas já fazem uso de uma vasta gama de tecnologias para desenvolver invenções e alcançar resultados que não seriam possíveis sem elas.

Há outras questões importantes a serem consideradas pelos formuladores de políticas de PI?
Sim. Questões muito mais importantes vêm sendo levantadas em relação às restrições ao uso de dados para algoritmos baseados em IA. Por exemplo, alimentar um algoritmo de IA com dados protegidos por lei de direito autoral é uma violação desse direito? É difícil responder a essa pergunta. Primeiro, porque não sabemos qual será o impacto de uma restrição desse tipo e, segundo, não há como afirmar que um dia saberemos se o trabalho produzido por um algoritmo de “deep learning”, ou aprendizagem profunda, foi criado utilizando dados protegidos pelos direitos autorais. Portanto, devemos examinar cuidadosamente os resultados que desejamos obter e os arranjos necessários para alcançá-los.

Como está a OMPI a preparar-se para a economia digital?
Na esfera política, estamos incentivando o diálogo entre os Estados membros para elaborar colectivamente as perguntas que os formuladores de políticas precisam de fazer. Estamos também discutindo colectivamente as eventuais maneiras de criar um quadro eficaz de políticas de inovação para a nova economia digital. Embora estejamos a anos-luz de um posicionamento internacional sobre essas questões, o exercício é importante e o seu valor inestimável. Ele vai ajudar-nos a entender melhor as implicações da política de PI com predomínio das tecnologias baseadas em dados na economia digital e apoiará a evolução das posições nacionais sobre essas questões.
Na esfera operacional, como a OMPI é uma organização multilateral, também deve lidar com a questão da justiça distributiva e do impacto que a rápida evolução da economia digital está tendo na capacidade dos países em desenvolvimento de participarem e competirem na economia digital. Inevitavelmente, isso vai influenciar a natureza do programa de desenvolvimento da OMPI.
No que se refere aos serviços da Organização, a escala da transformação digital da OMPI é significativa. A Organização continua a investir no aprimoramento das suas plataformas online e a desenvolver novos instrumentos baseados em IA destinados a essas plataformas. Podemos citar alguns exemplos, dentre os quais o WIPO Translate, a tecnologia de busca de imagens da OMPI para a Base de Dados Global sobre Marcas (Global Brands Database) e um pacote de novos instrumentos, como a tecnologia de conversão de voz em texto que visa melhorar a qualidade e a velocidade do registo das reuniões da OMPI. Vários outros instrumentos estão em fase de elaboração.
Outra proposta da OMPI, sujeita à aprovação dos países membros, é a criação de um registo temporal, semelhante a um serviço notarial digital, para ajudar inovadores e criadores a provarem que se encontravam em posse ou mantinham o controle de determinado arquivo digital a uma data e hora específicas. Trata-se de um passo modesto, mas significativo para ajudar inventores e criadores a protegerem melhor os seus interesses de PI na economia digital. Além disso, a iniciativa também é importante para adaptar os serviços da OMPI à realidade da economia digital.
É muito fácil considerar essas evoluções como uma série de novos produtos e serviços modernos, mas não podemos perder de vista a necessidade de encontrar soluções políticas para lidar com os aspectos profundos e transformadores dessas mesmas evoluções.

Fonte: WIPO (Creative Commons – Attribution (BY) 3.0 IGO)